Antes de propor para amigos que fossem comigo ao Pinheirinho ao invés de aproveitar o feriado de São Paulo, cheguei a dialogar com minha preguiça e minhas pendências. Perderam, dessa vez perderam. Me surpreendi que todos com quem falei, quiseram ir de imediato. Acho que tenho bons amigos. Na escalação final em São José dos Campos, Leandro Iamin, Felipe Castro, Camilla Feltrin e Ronald Sony. E o Sol.
O que encontraríamos já era deduzido. Um cenário caminhando para seu desfecho prático, uma atividade “controlada” e um recomeço caótico às pessoas de bem que por anos moravam na área ilegal. A PM fazia barreiras ao redor do gigantesco terreno. Não sabiam explicar o motivo, uma vez que nada além do Sol oferecia perigo. Quando conseguimos chegar no “portão” do “Residencial Pinheirinho”, vimos cerca de 40 pessoas a espera de entrar no terreno, buscar suas coisas e se mandar. Para onde? Que coisas? Às perguntas.
Os olhares eram vermelhos, molhados, cansados. Peles oleosas, vozes desafinadas. Ali, o retrato de quem tinha o que buscar. Citavam má fé policial, destrato com o combinado, violência, humilhação e morte. De criança inclusive. Na igreja teria morrido uma menina atingida por bomba. Não embarquei nessa, embora creia que ninguém morrer nessa operação se deva mais à sorte que ao cuidado da PM.
Vem um policial, sobe na guia como se fosse palanque, e explica: ninguém mais entra, a não ser que contrate um caminhão para pegar os pertences. Óbvio discurso ardiloso e cruel para quem não tem nem dez Reais. Ao mesmo tempo, ganhamos autorização pra entrar na cidade do Pinheirinho – vimos pouco depois que o discurso do oficial caiu por terra e alguns puderam ir às casas com kombis da Prefeitura.
Andar pelo Pinheirinho me lembrou Moçambique, Uganda, Ruanda ou outra cidade africana. As ruas grandes, grossas, os quintais generosos e os portões de madeira. A terra batida seca a boca. Policiais pixam paredes com um “V” em verde. É a sentença de morte dos barracos. Cor e letra nos intrigam. Paro na sombra de uma enorme árvore, encosto no portão e finjo ser o dono da casa. Vejo meu vizinho ser trucidado. Nem 30 segundos para uma máquina laranja destruir, fazer pó. Logo a casa de uma senhora cujo jardim era tão belo e bem cuidado. Tenho queda por jardins, lembro sempre de minha mãe e seu desejo por ter jardins. Um jardim a menos.
Corre um cachorro e se esconde atrás do meu portão. é receptivo ao meu carinho mas não do policial, que chega pedindo que o ajude a dispersar o cão. Dispersar o cão. Foi bonitinho o PM pegar o bichinho pela coleira e caminhar com ele com todo carinho. Fingi que acreditei que é sempre assim quando ninguém vê. “É duro ver mães com filhos no colo”, contou o fardado. Um bom bordão.
A destruição já estava vista, com direito a jegue preso e uma moça buscando coisas deixadas para trás por outros moradores. Um muy humano caminhão passou e me deu água. Dois copos. O segundo dei a uma senhora desesperada que não acalmava o próprio cachorro. São sempre muito sábios, esses cachorros. Era a hora de ver onde foram parar os ex-moradores. Dei um aceno sinceramente doído ao pinto de cabelo oxigenado que continuava na porta da cidade. Bem articulado, me disse que está trabalhando em um prédio e quando for pintar andares altos, pensará em pular e acabar com tudo. Espero que seja exagero.
Quisemos perguntar à polícia a razão de tantas barreiras, se só 40 ou 50 pessoas derrotadas e fracas se mantinham ali. Perdemos uma hora na espera e companhia do Capitão Antero, o mais minucioso entrevistado que já vi, detalhista, atencioso, um querido.
Antes de sermos levados à sala de aula que virou sua, um oficial nos deu 4 garrafas geladas de água. “Toma, não é fácil pra ninguém”. Tirante o bullying que um tal “SOBRANCELHUDO”, aluno da escola, sofreu na lousa da sala, o clima era de calma e seriedade. Com anotações toscas de caneta, Cap. Antero tirou óculos, chapéu, e explicou todos os passos, desde o Big Bang até o dia da Operação Pinheirinho. Após a rápida explicação, comentou conosco sobre a missão jornalística de ter credibilidade. Me senti ameaçado a fazer um bom trabalho.
O que Antero falou de relevante: ninguém morreu, ninguém se feriu gravemente, a população sabia que haveria a invasão, a PM não discute, cumpre, o foro de discussão é outro, ela vive da palavra “cumpra-se”. Tal informação não é novidade, mas ninguém tinha me dito isso com tanta amizade, simpatia, carinho até.
Saindo de lá lembrei de muitos jornais e revistas, e televisões e jornalistas desempregados, que fazem o mesmo que a PM. Vivem do “cumpra-se”, não discutem, fazem. E embora Antero tenha, sim, entrado no mérito de discutir a legalidade dos moradores ilegais, dando até exemplos de moradores desonestos do Pinheirinho, a resposta “o foro de discussão não é comigo” apareceu sempre que lhe interessou.
Ouvimos moradores afirmarem que queriam uma casa regularizada. A Prefeitura não é capaz de resolver o caso de todos, há o déficit habitacional, famoso no país da especulação imobiliária, mas, noves fora, ninguém para quem fiz a pergunta respondeu diferente: “sei que o Pinheirinho era ilegal, mas o que podia fazer?”. Esperar a Prefeitura dar uma casa? Eis uma discussão interminável.
O complemento de nossa viagem foi achar o grosso dos desalojados. Na igreja, famílias esparramadas em sombras esperavam a hora de irem embora dali. O pastor, que bastante ajudou, recebeu a “orientação’ de não mais abrigá-los em sua paróquia. Estavam indo para dois ginásios, disse o representante da igreja, mas tenho para mim que haviam mais alojamentos. Fomos ao maior ginásio. Muito colchão, uma minúscula mesa com medicamentos e uma maior com roupas para doação, parte delas arrumadas pela Gaviões da Fiel de São José dos Campos. O calor lá dentro é incômodo.
Uma criança com uma bandeira de movimento sindical me cutuca até que eu, do outro lado da grade, brinque com ela. Gargalha de cada gesto que eu faço. Dou três minutos de um bom dia pra ela. Boatos de que aquele povo será dividido em mais dois alojamentos preocupam todos. Curiosamente, ninguém quer sair do ginásio. Sentem que aquilo é o melhor que podem receber, possivelmente. Converso com Luiz, um negro de 35 anos, que se diz um dos líderes da comunidade.
Ele não confirma mortos, mas confirma 8 desaparecidos. Confirma que filhos foram separados de mães. Confirma que o que ocorreu é diferente do que a polícia disse que seria (Capitão Antero chamou isso, na entrevista de “fator surpresa” necessário para qualquer profissão). E afirmou, com queixo duro de quem está no limite, que se Marrom, o líder da comunidade, disser que sim, todos se voltam e se rebelam e lutam com a polícia e o sangue correrá.
Pois bem. na minha cabeça vieram os restos do Pinheirinho cercados por, segundo Cap. Antero, cerca de 1.700 policiais. Todos aparentemente bem almoçados (Luiz alegou comer arroz, purê e salsicha desde domingo). Que rebelião poderia haver a esta altura? Nenhuma, concluo. Protestos vão acontecer ainda, achei gente da USP no alojamento, que foi prestar solidariedade. mas explodiram prédios no Rio de Janeiro, semana que vem outra coisa acontece, e a atenção popular é dispersada tal qual os ex-pinheiristas serão espalhados para nunca mais se reencontrarem.
E no fundo é tudo mais duro que isso. Não vimos violência policial, no máximo suas consequências. Vimos só o começo de um longo sofrimento de desalojados. Nosso recorte temporal é impreciso, quase atrasado, e não é por isso que deixa de ser evidente a forma desastrada com que tudo foi feito. Nada ali está digno, e eu ainda acredito em cada violência – nem tanto mais nas mortes – que ouvimos dos moradores desde domingo.
As crianças só querem um cantinho onde haja sorrisos e outras crianças, só os cachorros sabem o que de fato aconteceu, e a viagem de volta foi reflexiva e triste na essência da palavra. É triste. Antes do último abraço, dei duas notas de dinheiro nas mãos de Felipe Castro. Quisera poder dar as mesmas notas a cada um lá no Pinheirinho. Mas o dinheiro não é a solução. É justamente o problema.
Leandro Iamin
Leandro Iamin, 27 anos. Jornalista, mora em São Paulo com coração em São José. Trabalha com futebol, carnaval e música, mas sabe que o mundo não é uma festa.
Triste, muito triste a realidade de nosso país.
Parabéns a esse jornalista pela iniciativa de ir até lá e pelo relato fiel.
Compas,
Um porrada na cara o texto, seco, forte. Excelente iniciativa.
Arnobio
Obrigado, amigo!