Escrevo na tentativa de criar outra possibilidade às insistentes estatísticas que categorizam em números adolescentes que cometeram atoinfracional sem com isso superar o anonimato a que foram submetidos. Não poderei apresentá-los um a um, mas mostrarei traços diferentes do “monstro”, “delinquente”, “bandidinho irrecuperável”. Tentarei apresentar-lhes mais de perto, devolver-lhes a humanidade. Sei que meu tempo é curto. Os noticiários policiais defendendo a redução da maioridade penal têm todos os dias, e eu sou apenas uma psicóloga que trabalhou com adolescentes em conflito com a lei e escreveu um texto, na condição de testemunha, para dizer não à redução da maioridade penal.
Ao contrário do que muitos pensam, os adolescentes que protagonizam noticiários policiais não alcançam a visibilidade. A partir do momento em que são definidos e desumanizados pelo ato infracional que cometeram, dispensa-se a compreensão dos determinantes da violência. A suposta “anormalidade” quando ganha o estatuto de explicação encerra qualquer debate, pois elimina o incômodo de olhar para a exclusão a que estão submetidos. E conhecer a história desses meninos, convenhamos, é um atentado à imagem sagrada da família margarina.
Tratam-se de sujeitos invisíveis: não possuem documentos, não estão na escola, não estão no mercado formal de trabalho, não estão fazendo exames preventivos, apresentam dificuldade de leitura e escrita, não conhecem teatro, museu ou exposição. Alguns gostam de shopping, mas são discriminados quando vão fazer um rolêzinho por lá. Em sua maioria são afrodescendentes, não convivem com o pai, e a mãe trabalha fora o dia todo para prover o sustento da família. As mães ganham pouco e, em geral, não recebem Bolsa Família porque os filhos estão fora da escola (é condicionalidade).
Falam que a vida no crime é cadeia ou caixão, mas não encontram outro projeto de vida. Traficar, roubar, gastar, consumir… é pra hoje. Objetos de consumo asseguram alguma notoriedade. Vivem na ficção do auge e da onipotência. Às vezes o álcool, a cocaína ou a maconha acompanham a madrugada no tráfico ou no baile funk mascarando o saber de que a vida é breve.
No baile funk encenam a “vida de patrão”. Momentos em que simulam que nada lhes falta (eles, que pouco tem) e, por vezes, estão acompanhados de meninas cujo olhar devolverá a eles uma importância, um lugar ou até mesmo uma saída.
Pra alguns, esse encontro inaugura uma interrogação sobre a vida que querem seguir. Por vezes, a urgência em construir uma família surge com o início de um relacionamento. Sem tempo para elaborar as transformações ocorridas em seu corpo, sua vida e a própria posição de filho, já almejam constituir a própria família, sem antes definir o que trazem de seus pais na bagagem e o que querem e o que rejeitam desses “pertences”. Em meio à paternidade, muitos ainda estão dolorosamente percebendo as falhas de seus pais, rivalizando, vivenciando o desamparo. Algumas crianças nascem antes que esse árduo trabalho de elaboração das vivências e da transição da posição de filho para pai tenha sido minimamente feita.
(Será que essas crianças são ao menos prova de sua existência? Será que elas terão o mesmo destino que a maioria desses meninos tiveram, ou seja, o de não ter pai?).
Adolescência enquanto fase de transição em que os pais dividem o peso das responsabilidades não é uma construção válida pra todas as famílias e classes sociais. Pra muitos pais, a capacidade de trabalhar e gerar filhos marca a entrada na vida adulta e há um estranhamento do discurso jurídico que define que eles são responsáveis pelos filhos até os 18 anos. De todo modo, o discurso jurídico tem seu valor, os pais ainda são responsabilizados, o que é importante para estes adolescentes cujos laços familiares muitas vezes estão fragilizados.
De qualquer forma, se a chegada dos enigmáticos 18 anos muitas vezes ganha o sentido de asas ou de forca, imagine aos 16 anos, em que o tempo da elaboração das escolhas seria ainda mais encurtado!
Com eles observei que antes do pensar, vem o agir. O agir impulsivo que diz no lugar das palavras, quando deveria ser o contrário. Não tem tempo. Vivem na urgência, poucas garantias e pouco valor tem o amanhã. Diferentemente dos adolescentes de classe média baixa/alta o tempo não corre a favor deles. Eles não têm a vida toda pela frente.
De modo geral, estes adolescentes não conhecem o mundo ideal das leis, mas podem discorrer com grande fluidez sobre as experiências de vida com o crime e a justiça que, por vezes, aparecem indiferenciadas. Os policiais, que são o contato mais próximo que eles têm da execução das leis, são os que agridem, forjam, humilham, ameaçam, roubam, exigem propina, estupram, matam. Sim, já ouvi histórias de estupro e de morte. A que leis eles estão submetidos? Não parecem as mesmas do ECA.
A Fundação CASA no relato deles aparece como o local de agressões, humilhações, ameaças, e… cabelos raspados. Quanto mais homogeneizados, mais dessubjetivação. Ali são todos iguais: delinquentes. E como tal, devem portar-se numa submissão de escravos: mãos pra trás, sim senhor, não senhor. Ninguém é digno de olhar nos olhos do senhor: cabeça abaixada. E assim as instituições parecem contribuir para que o traço em comum do envolvimento com o ilícito seja sua identidade. Qual outro modo de pensar senão que a solidariedade, o reconhecimento e o pertencimento a algum lugar é conquistado no crime? O que é ser alguém pra esses meninos? Quais opções tiveram?
Os programas de medida socioeducativa em meio aberto, semi-aberto ou fechado (Fundação CASA) foram criados para realizar um trabalho de inclusão destes adolescentes oferecendo outro caminho que não seja o crime. Pelo menos na minha experiência profissional, não vi as instituições realizarem um trabalho articulado nem um investimento em trabalho preventivo junto à comunidade. A verba era escassa e quase não tínhamos oportunidades de profissionalização e de estudos a oferecer. A escola, aliás, era a primeira a fechar as portas: negavam a matrícula com desculpas diversas ou sem qualquer pudor justificavam a exclusão através do estigma do delinquente.
Fora da escola, os adolescentes aprendem como lição que a vida deles é ” cadeia ou caixão”, ou pior, “é matar ou morrer”. Estão em guerra. E marcam os corpos com desenhos de palhaços, carpas e outros símbolos que o definam a partir desta dualidade em que se situam na guerra contra os policiais.
A violência, portanto, é parte constitutiva e companheira antiga. São violentados quando não possuem direitos básicos como moradia, saúde e educação assegurados. São violentados quando experimentam precocemente o desamparo de seus familiares. São violentados pela urgência de viver, sem quaisquer expectativas e garantias para o futuro. Violentados, reproduzem a violência do Estado omisso.
Eu me perguntava todos os dias quais opções eles tinham. E eu não tinha muito mais do que oferecer senão a minha escuta, um lugar de testemunha e as interrogações que colocava na vida que estavam escolhendo. Pra cada história outra saída poderia ser aberta. Alguns vinham sempre aos atendimentos, outros não. Mas diante de tantas situações de quase morte que eles relatavam, eu sempre me perguntava: ele estará vivo até o próximo atendimento?
Saí de lá e ainda me pergunto: ainda estão vivos ou juntaram-se às estatísticas de homicídios de jovens negros?
Até quando a singularidade desses adolescentes será reduzida às suas digitais?
Renata Winning é psicóloga, atua em consultório particular e em centro de atenção psicossocial Infantil /Infantojuvenil (CAPS I) – renatawinning@gmail.com
Por Renata Winning, para os Jornalistas Livres*
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E aí os reacionários vomitam “Tá com dó leva ‘o anjinho’ pra casa!”. É justamente de uma casa que esses jovens precisam. Seria bom que, sendo tão bons e corretos como esses adultos pensam que são, levassem um jovem para casa e desse a ele a mesma importância que as crianças da família tem. Ninguém gosta de ser invisível e desprezado. Por que os adolescentes pobres deveriam gostar?
Belíssimo texto! Parabéns!