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O GRITO, novela escrita por Jorge Andrade e dirigida por Walter Avancini, Gonzaga Blota e Roberto Talma, estreou em 27 de Outubro de 1975 na faixa das 22:00. Era uma grande aposta da Globo em seu horário mais experimental.

A novela estreava com muitas expectativas em torno de si. Tinha a difícil missão de substituir o megasucesso Gabriela. Marcava a volta de Jorge Andrade à televisão depois do grande sucesso de Os Ossos do Barão dois anos antes (Jorge sofreu um enfarte durante o trabalho). Depois de muito tempo, a Globo apostava em um vôo solo de Glória Menezes à frente de um elenco. Tarcísio Meira, seu eterno parceiro nos palcos e na vida, tinha recém saído de Escalada, de Lauro César Muniz.

Propositadamente ou não, a emissora marcou essa expectativa na própria abertura da novela. Pela primeira e única vez, usou-se a marcante frase “REDE GLOBO APRESENTA”, comum na linha de shows e nas transmissões esportivas, antes da apresentação dos créditos de uma telenovela.

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O texto era urbano, ambientado em São Paulo e focado na discussão da desumanização das metrópoles. Nada mais antagônico com o feérico folhetim baseado na obra de Jorge Amado que o antecedeu. A trilha sonora, basicamente instrumental, foi composta em grande parte pelo maestro Radamés Gnatalli e pelo brilhante saxofonista Victor Assis Brasil.

“São Paulo é uma cidade com 12 milhões de habitantes, dura, onde as pessoas lutam para viver, onde não se tem lugar para empregar o lazer, não existem parques nem jardins, onde as ruas são esburacadas, onde há poluição de tudo quanto é espécie: poluição do ar, poluição visual, poluição sonora, poluição arquitetônica. O homem fez a cidade para o homem mas não pensou no homem que ia viver nessa cidade. São Paulo está aí toda revirada, tentando se consertar. Eu creio que ela vai ser consertada um dia.”

Jorge Andrade

Fumando em sua famosa piteira, ele criou um microcosmos representativo da metrópole chamado Edifício Paraíso. Elegante, imponente, muitíssimo bem localizado. Ocupava o terreno de um antigo casarão de uma família quatrocentona. Dois apartamentos por andar, piscina, espaço e conforto para os moradores. Com a construção do Elevado Costa e Silva à sua porta, a desvalorização foi inevitável e, para diminuir o prejuízo, seu construtor determinou alterações na planta. A distribuição dos apartamentos ficou assim: Cobertura, onde há um duplex onde vive o construtor do edifício com sua família; Apartamentos de três quartos do 9º ao 3º andar; Doze pequenos apartamentos nos dois andares inferiores, muitos alugados, outros vazios.

Ao tomar essas medidas, o construtor transformou o Edifício Paraíso em uma espécie de zoo humano onde viviam pessoas de variadas origens e classes sociais. Onze andares de contrastes e desespero, refletindo a desigualdade social tipicamente brasileira.

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Jorge não era um homem de esquerda. Muito pelo contrário, era um legítimo representante da aristocracia cafeeira paulista do começo de século. Mas sua ousadia na construção desta novela reside no fato de denunciar fatos que hoje são ainda muito contemporâneos, evidenciados pela brilhante gestão do prefeito Fernando Haddad (PT). São Paulo só agora parece querer se organizar enquanto cidade civilizada, colocando os homens à frente da máquina e do concreto.

Hoje em dia nenhum autor de televisão faz coisa parecida, mesmo esta classe estando recheada de pessoas que se dizem de esquerda, humanistas, preocupadas com o que acontece nas grandes cidades.

Jorge Andrade povoou este edifício com personagens fascinantes. Diferentes entre si, sem margens para o maniqueísmo fácil típico das telenovelas. Ex-prostituta. Médico. Arquiteto. Atriz. Bancário. Dona de Casa. Secretária. Ambulante. Fazendeiro. Estudante. Socialite. Essa vasta gama de pessoas era obrigada a conviver e a mostrar uns para os outros o que escondiam por trás das finas paredes de um apartamento.

Preconceito. Nostalgia. Ambiguidade. Medo. Contrabando. Insegurança. Dor. Angústia. Desespero. Esse caldeirão esperava um só fato gerador para que sua temperatura subisse a níveis insuportáveis. E esse fato ocorreu com a chegada de dois novos moradores ao prédio.

Uma viúva que vivia com seu filho doente. Uma mulher com uma história de vida marcada pela dor e pela superação. Marta, personagem vivida por Glória Menezes, era uma religiosa que vivia num convento, imobilizada pelas tarefas de uma freira. Rezar, rezar, rezar. Ela questiona sua vocação ao se fazer simples perguntas:

– Eu não posso servir a Deus de outra maneira? Eu preciso viver trancada num convento?

Ela sai do claustro. Conhece um homem carinhoso, fiel, trabalhador. Casa-se e engravida. Perde este marido, morto muito cedo. Cria com sacrifício e resignação o pequeno Paulinho, que sofre de uma síndrome que mata as crianças até quinze ou dezesseis anos no máximo. Como ocorre no autismo, o menino não se comunica. Solta gritos terríveis, inumanos durante a noite, não permitindo que os vizinhos descansem. Isto coloca Marta como uma verdadeira cigana, mudando-se três ou quatro vezes de diferentes edifícios, sempre despejada.

Ao chegar ao Edifício Paraíso (que traz em seu próprio nome uma enorme ironia), Marta depara-se mais uma vez com a indiferença, a incompreensão, a ojeriza com que as pessoas tratam quem é diferente. O condomínio discute em reuniões a expulsão. Mas, talvez ciente de que sua missão como mãe está próxima do fim, desta vez ela resolve traçar uma estratégia de sobrevivência. Seu único objetivo é viver em paz com seu filho. E ela usa de todas as armas para alcançar seu objetivo.

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O texto de Jorge Andrade aliado ao sensível trabalho de Glória Menezes deu a esta história uma dimensão maior. O grito de Paulinho representou o grito do homem por socorro.

“Marta é, para mim, aquele elemento da história que vem, modifica, transforma. Marta é um elemento transformador. Transforma as pessoas. É uma espécie de presença da História que vem e se modifica através do tempo. Ela é idealizada pois revela meu ponto de vista ecumênico sobre o mundo de hoje. Quer dizer, da união dos homens, do caminhar da humanidade para uma perfeição maior, de um futuro maior. E quando falo em futuro, não estou falando de trinta anos, que isso não é futuro. Estou falando de um futuro daqui a mil anos. O homem vai chegar a alguma coisa muito boa, porque o homem é fundamental: é ele quem faz a história, quem transforma o mundo e transforma a si mesmo. O homem vai chegar a esse ponto de maior perfeição, maior tolerância, sem preconceitos. Quero dizer que O Grito tem muito mais profundidade do que as pessoas possam imaginar, porque estão acostumadas a acompanhar uma ‘historinha’ e a não pensar. Na minha novela eu coloco problemas para serem pensados.”

Jorge Andrade

Vivíamos sob severa ditadura. A classe artística estava na linha de frente, na vanguarda do pensamento de um futuro democrático para o pais. Mas havia censura. Mais que censura, tortura, assassinatos, perseguições, exílio. Não havia outra discussão no Brasil daqueles tempos. Ou se era engajado ou se era alienado. Escrever novela engajada em 1975 era delírio, um delírio perigoso. Jorge Andrade foi por outro caminho. Não quis ser adesista, pelego, vendido ao sistema. Tampouco quis encampar uma quixotesca campanha contra o regime num veículo de comunicação de massa. Jorge Andrade fez um libelo humanista com esta novela. Buscou questões muito mais profundas da sociedade, questões que transcendem a própria política. Questões universais e muito mais próximas da vida de cada um dos telespectadores.

A obra gerou grande repercussão na sociedade. Jogou na cara dos brasileiros problemas que não eram discutidos. Jorge foi acusado de denegrir a imagem da cidade de São Paulo. Mais que denegrir, deturpar. Recebeu reprimendas de deputados, participou de debates acalorados. No Rio de Janeiro, um edifício foi centro de uma polêmica. Uma criança com problemas mentais foi ameaçada de expulsão logo após a entrada no ar da novela. Claro que Jorge Andrade foi considerado por muitos culpado, inspirador deste comportamento por conta dos condôminos. Era definitivamente uma novela polêmica.

Jorge tinha por hábito desenvolver sinopses de volume considerável e descrições detalhadas de características dos personagens de suas novelas, chegando a três ou quatro laudas para cada um deles. Não se importava com o IBOPE ou com pesquisas encomendadas pela emissora a respeito de pares românticos, temáticas etc. Para ele, a novela de televisão merecia o mesmo cuidado que ele dedicava a seu teatro. Ingenuidade ou genialidade incompreendida?

‎”Se todos podem ouvir os gritos da cidade, os barulhos que ela faz, porque não ouvir os gritos dos outros?”

Trecho de uma fala de Marta (Glória Menezes) no último capítulo da novela.

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Os gritos dos outros seguem nas ruas. No movimento gay, na luta dos negros, dos sem teto, das famílias sem terra para plantar. A televisão olha para eles? Em 2015 o horário das 23 abriga polêmica apenas em questões menos importantes para a coletividade, como a prostituição no mundo da moda. Onde foi parar a discussão do Brasil através da teledramaturgia?

Já fizemos isso diversas vezes, não só em O Grito. Vale Tudo e O Rei do Gado são exemplos concretos onde o que se discutia na novela ia diretamente para os bares e lares do Brasil como pauta de conversa. Obras de ficção que nos ajudaram a criar um país melhor.

Hoje vemos o papa na Bolívia denunciando este enorme estado de desumanização da sociedade. Quando um religioso conservador tem o discurso mais moderno que o de dramaturgos e roteiristas de televisão, é a hora de percebermos o que estamos construindo em nossa dramaturgia. Esta novela que escolhi para demonstrar a nossa decadência como produtores de conteúdo para a televisão é a prova inequívoca de devemos retomar nas artes o caminho que a esquerda tem tentado fazer na política.

O homem deve estar à frente. Sempre.

“No mundo de hoje, o homem suporta os gritos da tecnologia, das obras, do trânsito, de tudo quanto é material, porém não quer suportar seus próprios gritos Torna-se então preconceituoso e intolerante e foi desse clima que elaborei a minha novela. No Edifício Paraíso, coloquei um extrato da grande cidade e fiz com que ela se refletisse no comportamento de seus moradores”

Jorge Andrade

 

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