Por Tatiana Oliveira
Uma das coisas mais bonitas em ser feminista é que saber que quando você se solidariza às causas de outras mulheres, a história de sua vida começa a mudar. Foi o que aconteceu comigo desde que conheci as militantes do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), entre elas, Preta Ferreira, que convidei para deixar seu relato. O MSTC faz parte da Frente de Luta por Moradia (FLM), unindo diversos movimentos de trabalhadores sem-teto em todo o país na luta por moradia digna e resistência à especulação imobiliária. E a Preta… bem, a Preta tá nessa luta simplesmente desde criancinha.
O MSTC, conta, hoje, com dez ocupações no centro de São Paulo. Mas, há alguns meses atrás, duas destas ocupações corriam risco de acabar. Foi então que escrevemos várias cartas ao prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, pedindo que olhasse com atenção para as famílias que moram nestes prédios. A carta do Coletivo Linha de Frente, ao qual eu e Preta fazemos parte, pode ser lida ao fim deste texto. Como resposta, a prefeitura desapropriou o edifício Prestes Maia para destiná-lo à moradia das famílias que têm ocupado e preservado o local e incluiu o Hotel Cambridge no chamamento do programa Minha Casa, Minha Vida. A carta de agradecimento também pode ser lida logo abaixo. E onde entre a Preta nisso tudo? Eu a convidei para escrever uma carta de cunho pessoal, falando sobre sua luta neste movimento e o que representa para ela a conquista destas duas ocupações. Preparem seus corações, é, de longe, uma das cartas mais bonitas que já li.
Eu cresci sem teto, não morrerei sem lar
Ainda em minha infância, vivi por cinco anos em um prédio ocupado, o edifício do INSS, situado na Avenida Nove de Julho, São Paulo. Ali, tive os melhores momentos da minha vida. Mas antes de continuar meu relato, você precisa saber como eu fui parar lá.
Vim de Salvador junto com meus irmãos, para morar com minha mãe que já era uma das ocupantes do prédio do INSS, o que me fez aprender o significado de solidariedade, amizade, companheirismo, luta e fidelidade aos meus princípios.
Lembro-me até hoje que nossa obrigação era ir para a escola e, depois da aula, fazer diversos cursos para não perder a única oportunidade de crescer na vida. Mesmo assim, de lá para cá, muitos amigos se foram sem conseguirem realizar seus sonhos. Alguns morreram, outros desistiram; nossa luta nunca foi fácil.
As pessoas que não conhecem o movimento sem teto têm o péssimo hábito de julgar a causa sem conhecê-la. Muitas vezes, somos chamados de ladrões, preguiçosos, vagabundos, bandidos. Quantas vezes, na escola, me disseram que minha mãe saqueava prédios. Minha resposta? Eu seguia na luta.
Também no colégio, tinham medo de nós, intitulados como “os moradores do predinho”, como foi apelidado o edifício do INSS. Mas criança é um bichinho porreta e alcançamos nossa reviravolta: tão jovens, mas fizemos enxergar qual era a nossa luta e, de temidos passamos a ser populares, toda a escola queria frequentar o prédio e participar das ações que fazíamos ali, “o predinho era legal”.
Enquanto crescia, convivi com muitas promessas políticas, minhas esperanças e sonhos estavam sendo manipuladas o tempo todo, mesmo que eu não soubesse. E, se para você uma das primeiras decepções foi não ganhar uma Barbie no natal, a minha foi quando disseram que sairíamos do prédio com a certeza de que o local seria reformado para se transformar em moradia popular. Nunca me esquecerei desta mentira e as graves consequências que ela nos trouxe.
Fomos despejados do prédio de forma cruel, desrespeitosa e desumana. Ficamos nas escadarias da avenida feito cães abandonados e nada fizeram por nós. Entre as famílias, idosos e crianças. Sentada nas escadas, pensei que nossa casa agora seria a rua. “Ninguém aqui tem para onde ir. Se tivesse não estaria ocupando.”
Decidimos sair para não levar borrachada da Polícia Militar à toa e para que as pessoas não pensassem que éramos bandidos. Pouco depois, o prédio foi ocupado por outro grupo, que detonou nosso trabalho, deixando a moradia igual ao castelo de Greyscow, enquanto nós estávamos abandonados e nenhuma autoridade tomava providências. Dormimos ao relento, enquanto nossos governantes estavam em suas camas macias e quentes, de olhos fechados para a crueldade a que nossas famílias estavam submetidas.
Nós não queríamos nada de ninguém, apenas fazer valer nossos direitos, exatamente como diz a Constituição. Quais direitos? Os direitos sociais, concebidos e garantidos pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º. Em especial, o direito à moradia, pois ao lado da alimentação, a habitação figura no rol das necessidades mais básicas do ser humano e, é também, um direito fundamental desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornando-se um direito humano universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo como um dos direitos fundamentais para a vida das pessoas.
Desde que me vi naquela escadaria, sem um lar, muita coisa mudou. Graduei-me em Publicidade, amadureci profissionalmente, não vivo mais em nenhuma ocupação. Minhas condições de vida melhoraram porque não perdi a esperança, não desisti, mas, o mais importante, nunca senti vergonha de gritar o lema do MSTC, a qualquer hora e lugar. “Quem não luta tá morto”.
Ainda hoje, faço parte do MSTC e isto me traz um orgulho imenso. E, recentemente, em uma das maiores conquistas da história de nosso movimento, o atual prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, enxergou nossa luta e garantiu que centenas de jovens não fiquem jogados ao relento em escadarias como aconteceu comigo [Leia carta de agradecimento por atender as famílias das ocupações Prestes Maia e Hotel Cambridge].
Só quem veio de um berço sem teto sabe o que é poder falar da emoção de ter um lar. O passo garantido por Haddad foi só o primeiro de um futuro mais digno e igualitário. E é com o coração cheio de amor e lágrimas de felicidade que escrevo este breve relato, que mostra a satisfação em lutar para transformar a própria vida em uma história de conquistas. Tenho orgulho de fazer parte do MSTC. Eu cresci sem teto e não morrerei sem um lar. Só quem já sentiu e sente na pele o desprezo de uma sociedade hipócrita e desumana sabe o que representa a conquista da casa própria. Mas não paro por aqui: Vou lutar até o fim, até que os filhos dos pobres comam melhor que os cães dos ricos.
Por Preta Ferreira – Coletivo Linha de Frente
MSTC – FLM
Prestes Maia, Hotel Cambridge e o coração de Preta
O MSTC, conta, hoje, com dez ocupações no centro de São Paulo. São prédios que estavam abandonados e depredados há muitos anos, com grandes dívidas com o município, estado e/ou União, enquanto famílias de baixa renda não conseguem encontrar opção de moradia com prestações que sejam condizentes com seus salários. Mas, quando o MSTC ocupa um prédio, ele ganha função social, como moradia para crianças, jovens, adultos e idosos, entre brasileiros, imigrantes e refugiados, que além de cuidar do prédio em multirões de limpeza, pintura e elétrica, desenvolvem ações de inclusão social como oficinas de teatro, capoeira, fotografia, audiovisual, leitura e escrita, comunicação, e muito mais.
Mas, há alguns meses atrás, duas destas ocupações corriam risco de acabar, Prestes Maia e Hotel Cambridge. Foi então que escrevemos várias cartas ao prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, pedindo que olhasse com atenção para as famílias que moram nestes prédios.
As potencialidades das ocupações Prestes Maia e Hotel Cambridge, como espaços extremamente férteis para o intercâmbio cultural e envolvimento ativo de moradores e comunidade externa em atividades de formação política e cidadã, além de enxergar o espaço como ideal para se desenvolver uma economia criativa e solidária, de distribuição menos desigual.
Como resposta, a prefeitura desapropriou o edifício Prestes Maia para destiná-lo à moradia das famílias que têm ocupado e preservado o local e incluiu o Hotel Cambridge no chamamento do programa Minha Casa, Minha Vida. O relato da Preta Ferreira, acima, é inspirado nesta conquista.
Leia as cartas entregues pelo coletivo Linha de Frente ao Prefeito Fernando Haddad, em defesa das ocupações Cambridge e Prestes Maia
São Paulo, 28 de agosto de 2015.
Ilmo Sr.
Fernando Haddad
São Paulo/SP
Tanta gente sem-teto, tanto teto sem-gente. Escrevemos para lhe contar sobre nossa luta por moradia digna, construída através de um trabalho cheio de amor para milhares de famílias, incluindo crianças e idosos. Somos do Coletivo Linha de Frente, formado por pessoas físicas, membros de outros coletivos/redes e integrantes do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Entre nós há comunicadores, jornalistas, fotógrafos, documentaristas, ativistas, militantes, cineastas, artistas e jovens do próprio MSTC. Estamos nesta luta porque sabemos que as ocupações do movimento sem-teto são espaços extremamente férteis para um forte intercâmbio cultural e envolvimento ativo de moradores e comunidade externa em atividades de formação política e cidadã. Neste ínterim, pedimos que não desampare os moradores das ocupações Cambridge e Prestes Maia, símbolos da luta por moradia, no centro de resistência de uma capital que grita por mais solidariedade e justiça social.
Antes de ser ocupado, o Hotel Cambridge estava abandonado há mais de dez anos; o prédio Prestes Maia há quase 20. Sabemos que não são exceções, ainda há centenas de outros imóveis em São Paulo, depredados e desperdiçados, enquanto famílias de baixa renda não conseguem encontrar opção de moradia com prestações que sejam condizentes com seus salários. Antes, ambas as ocupações eram habitadas por ratos, doenças, baratas, drogas e mortes. Mas a FLM (Frente de Luta por Moradia) mudou essa história. Hoje, Cambridge e Prestes Maia têm vida. E vida em abundância.
Sendo assim, o Prefeito está convidado a conhecer nossas atividades e a satisfação de fazer parte desta luta. Convidamos para, por exemplo, ouvir a Banda Satélite, composta por refugiados haitianos que se uniram nas ocupações do MSTC. Pode ser em um dia de Brechó Cambridge, um evento aberto, gratuito, que acontece no mezanino da ocupação, fortalecendo o espaço como ponto comercial e cultural. A próxima edição será no dia 12 de setembro de 2015. É uma festa linda, Prefeito, o senhor precisa ver! É daqueles momentos em que lembramos que apesar de todas as dificuldades e preconceitos enfrentados, não se pode perder a esperança e a alegria de visualizar um mundo com igualdade de direitos, pautado em uma economia criativa e solidária, de distribuição menos desigual.
Sabemos que o senhor é um leitor assíduo, por isto, também está convidado a visitar a Biblioteca Cambridge, que vem passando por um processo de organização e catalogação, a fim de ser um espaço adequado para o desenvolvimento de atividades que fomentem o interesse pela leitura. Também na biblioteca há aulas de reforço escolar todos os sábados e aulas de inglês, para capacitar os jovens a comunicar-se em língua estrangeira.
O Prefeito também pode acompanhar as oficinas de vídeo para crianças, às quartas-feiras, na Ocupação Cambridge. Nela, os pequenos criam, roteirizam e produzem pequenos vídeos de ficção e de documentário, retratando seu cotidiano e desenvolvendo a criatividade e concentração. O senhor consegue imaginar a empolgação destas crianças ao entrevistar o prefeito de São Paulo? Nós do Linha de Frente conseguimos; eles enlouqueceriam!
Ainda no Cambridge, o senhor pode provar algo de nossa Fantástica Fábrica de Bolos. Recomendamos o de fubá e o de milho, são nossas especialidades. Tudo produzido e vendido diariamente por moradores. Aliás, aproveite para visitar nossa cozinha, que possui forno industrial de padaria. Como todos os espaços das ocupações, ela é limpa, organizada e exemplar.
Quanto à Ocupação Prestes Maia, sabe-se que o prédio é reconhecido como a maior ocupação de sem-teto da América Latina. São mais de 300 famílias que vivem no local, um olhando pelo outro. E se antes o prédio era ocupado por traficantes e drogados, hoje é habitado por trabalhadores que buscam qualidade de vida e igualdade social. Neste prédio, há shows gratuitos e, olhe só que ironia, desde que foi ocupado pelo MSTC, o prédio outrora esquecido se tornou cenário para clipes dos Racionais e Emicida, ícones de uma cultura que representa as mais relevantes causas sociais.
Nas ocupações do MSTC também é possível comprar materiais de limpeza produzidos pelos moradores. Os produtos são acondicionados em materiais reciclados, como garrafas pets e recipientes plásticos. Todo o processo é gerido pelos moradores. São vendidos cloro, desinfetante, detergente, sabão líquido, amaciante, cera e álcool perfumado.
As ocupações são espaço para oficinas de fotografia, formação política e comunicação para adolescentes, afinal, é preciso que eles tomem conhecimento e sejam capazes de serem protagonistas de suas próprias ações. Além disso, existem as aulas de capoeira e a oficina de teatro para iniciantes. E pode ir sem receio, Prefeito, todas as atividades realizadas são abertas para participação de moradores de quaisquer ocupações do MSTC, bem como sociedade civil em geral.
Por fim, convidamos a acompanhar uma das assembleias gerais, cuja participação dos moradores é massiva, entre outras inúmeras ações elaboradas para engajar os integrantes do MSTC. No final da assembleia, não deixe de conversar com nossas mulheres, as guerreiras do movimento sem-teto que têm seus direitos violentados pelo Estado diariamente, mas mesmo assim não deixam de defender a luta por moradia como leoas para proteger seus iguais.
Sim, senhor Prefeito, houve um tempo em que Cambridge e Prestes Maia não tinham função social. Mas agora, estas ocupações estão vivas! E como seus eleitores, acreditamos em sua coerência política e esperamos que ambas não retrocedam, mas sim prosperem ainda mais.
Una-se a nossa luta, Haddad, olhe por nós aqui embaixo.
Coletivo Linha de Frente
São Paulo, 21 de outubro de 2015.
Ilmo Sr.
Fernando Haddad
São Paulo/SP
Em 28 de agosto deste ano, divulgamos uma carta pública em defesa das ocupações Prestes Maia e Hotel Cambridge. Nela, relembramos a função social que estes prédios passaram a ter desde que foram ocupados pelo MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) e FLM (Frente de Luta por Moradia). Reforçamos que, como seus eleitores, acreditávamos em sua coerência política e esperávamos não retroceder, mas sim, prosperar. E agora, voltamos para agradecer por ouvir nossas lutas e reconhecer nosso valor. Centenas de nossas famílias terão um teto, não seremos mais esquecidos. Se nossos jovens cresceram sem teto, eles não morrerão sem um lar.
Na madrugada de 16 de setembro, o Coletivo Linha de Frente esteve junto ao MSTC, acampando em frente à prefeitura, buscando voz. Fomos recebidos ainda no primeiro dia de acampamento e expusemos nossas urgências. Como resposta, a prefeitura desapropriou o edifício Prestes Maia para destiná-lo à moradia das famílias que têm ocupado e preservado o local e incluiu o Hotel Cambridge no chamamento do programa Minha Casa, Minha Vida. A isto, Haddad, gratidão é pouco.
Nestas residências, outrora abandonadas, habitarão trabalhadores e trabalhadoras, crianças e idosos, que desde que nasceram tiveram seus direitos violados, sem expectativas de melhores condições de vida. E mais, dessas moradias dignas sairão professores, médicos, publicitários, arquitetos, jornalistas, entre outras tantas profissões que cada jovem, agora com um lar, pode almejar.
Ao incluir a população de baixa renda no centro da cidade de São Paulo, aumentará a qualidade de vida do trabalhador e o fomento à reforma urbana. Além disso, famílias não precisarão mais temer a escuridão e o frio das calçadas; a isto chamamos de resgate para a dignidade e inclusão social.
É preciso lembrar que nunca deixamos de acreditar que isto seria possível nem deixamos de esperar nossa vez, porque sabíamos que este dia iria chegar. Contudo, nada parecido havia sido feito. Foi o senhor, prefeito Haddad, quem colocou o MSTC no século XXI, porque esta luta nunca havia sido reconhecida, até mesmo por outros gestores que acreditávamos que olhariam por nós. Por isto te apoiamos e, agora, temos a certeza de que nossa luta não é em vão. E sabe, prefeito, mal esperamos os próximos passos; ainda teremos muitas lutas e conquistas para nos orgulhar.
Agradecemos por acreditar no MSTC e nos permitir mais esperança na política brasileira, em especial nos políticos que acreditamos merecer o cargo que representam, capazes de nos garantir uma vida mais digna e igualitária. Vemos sua gestão como uma forma de revolucionar uma cidade tantas vezes conservadora e individualista e sabemos que um bom político faz acontecer a todos, sem exceção de pessoas ou classe social, enxergando ao próximo como pessoas iguais. Novamente, obrigado.
Coletivo Linha de Frente
Só agora, depois da prisão de Preta Ferreira e sua mãe e irmãos e companheiros de luta é que eu estou me inteirando do movimento para tabm defender. É a primeira vez que leio esse relato e essas cartas . Não é possível uma luta grande e forte como essa continuar apagada. É preciso publicar é preciso anunciar .
E estou encantada e emocionada com o trabalho tão lindo e digno realizado nas ocupações. Quero conhecer de perto. Sou moradora de Piracicaba mas qndo for a SP farei questão de conhecer a dessas ocupações.
Gratidão.