O Rio de Janeiro terá mostra de cinema com clássicos africanos. Vivemos tempos onde a cultura tem sido cada dia mais alvo de tentativas {{e sucessos}} de censura e uma caça às bruxas cada dia mais visceral. Tempos de William Waack e de retrocessos, onde até mesmo a Lei que obriga escolas públicas a ensinarem a História Africana às crianças e adolescentes brasileiro está ameaçada.
Neste contexto, é fundamental iniciativas que caminhem no sentido oposto, ou seja, que divulguem a memória e informem mais um país cuja maioria da população é de descendência africana.
Acontecerá no Rio de Janeiro, entre os dias 14 e 26 de novembro, na CAIXA Cultural do Rio de Janeiro, uma mostra cinematográfica que vale a pena ser conferida.
Além dos filmes também irão ocorrer debates {{o serviço está ao final da matéria}} sobre eles. ImprenÇa entrevistou Tiago Castro Gomes, curador da mostra. Confira:
ImprenÇa: Como surgiu a ideia para o Festival?
Tiago Castro Gomes: – Meu primeiro contato mais marcante com as cinematografias africanas aconteceu em um intercâmbio para estudar cinema por um semestre na York University, no Canadá, em 2011. Quando retornei, então no quinto período do curso de Cinema & Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF), comecei a perceber como o currículo do curso era muito eurocêntrico e “branco”. A partir daí, decidi me dedicar ao estudos das cinematografias latino americanas e africanas. No meu trabalho de conclusão de curso, analisar a vida e a obra do cineasta senegalês Ousmane Sembène, considerado o pai do cinema africano. Logo em seguida, em 2013, montei uma mostra sobre Sembène, que não foi realizada, pois não foi aprovada em nenhum edital de ocupação de centros culturais. Resolvi ampliar a mostra para abarcar outros cineastas africanos da mesma região e mesma época das de Sembène e assim surgiu a ideia da mostra Grandes Clássicos do Cinema Africano. Essa primeira geração de cineastas foi responsável por discutir e instaurar várias características em termos formais e de conteúdo que persistiram e persistem até hoje, como por exemplo a importância da tradição oral ao cinema, um compromisso político-social do cinema (como era o discurso de Ousmane Sembène ) ou um cinema mais ligado a experimentações formais (como é o caso dos cineastas Djibril Diop Mambéty e Méd Hondo)
ImprenÇa: Por que a escolha da África Francófona ?
Tiago Castro: A África Francófona Subsaariana foi a região africana que primeiro despontou em termos cinematográficos para o mundo. Vários são os motivos para isso – a maior parte das colônias francesas, por exemplo, se tornaram independentes em 1960 (muito antes das colônias portuguesas que só conquistaram sua independência na década de 1970). Além disso, a França passou a incentivar o cinema de suas ex-colônias por meio de diversos órgãos (como o Ministério da Cooperação, o Bureau du Cinéma, a OCAM e outros) em busca de uma manutenção dos laços firmados na era colonial – era interesse dos franceses continuarem sendo umas das lideranças mundiais.
O cinema da África Francófona contou com o apoio de grandes nomes do cinema como Georges Sadoul, Jean Rouch e também da editora Présence Africaine, dos primeiros estudantes africanos que estudaram cinema na França… enfim, tudo isso contribuiu para que muitos dos primeiros filmes africanos surgissem na região da África Francófona – no Senegal, temos pioneiros como Ousmane Sembène e Paulin Vieyra, no Níger, temos Moustapha Alassane, no Mali temos Souleymane Cissé. Todos eles começaram a se envolver com cinema logo nos primeiros anos de independência de seus países. Também ganharam reconhecimento no mesmo período – Sembène participou com Borom Sarret do festival de Tours, na França, sendo inclusive premiado. Em 1966, seu filme A negra de… (La noire de…) participa do Festival de Cannes e leva o prêmio Jean Vigo. Méd Hondo com Ó, Sol (Soleil O) ganha o Leopardo de Ouro em Locarno em 1970. Mambéty ganha o prêmio da crítica em Cannes em 1973…
O reconhecimento internacional também levou com que esses cineastas e seus filmes se tornassem relevantes em seus próprios países, impulsionando políticas cinematográficas específicas em cada país, o surgimento de festivais africanos (como o FESPACO, principal festival de cinema africano até hoje) e outras conquistas.
ImprenÇa: Pode discorrer um pouco sobre a história do cinema da África Francófona? As principais características, um pouco da história…
Tiago Castro: O cinema da África Francofóna Subsaariana é bastante plural, não podemos esquecer que há diferenças entre os cinemas dos países que compreendem essa região – por exemplo, o cinema do Senegal é diferente do cinema de Burkina Faso, que é diferente do cinema do Mali, do Níger e assim por diante. Durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, cada país vai construindo uma política cinematográfica própria e muitos cineastas procurando estéticas singulares. Mesmo assim, vários teóricos ainda se utilizam de uma divisão regional – se você pegar diversos livros sobre os cinemas africanos pode ver divisões como “África Lusófona”, “África Anglófona” e “África Francófona”. Isso acontece porque também há diversas semelhanças dentro dessas regiões. No caso do cinema da África Francófona podemos ver uma influência muito grande da tradição oral africana nas narrativas fílmicas – o cineasta é visto como um griot moderno – aquele que tem a função de disseminar todo o conhecimento daquelas sociedades às gerações futuras.
Além disso, nessa região há um forte intercâmbio que se interliga a um movimento pan-africano. Existem, por exemplo, a FEPACI (Federação Pan-africana de Cineastas) que foi fundada pelos cineastas da África Francófona e o FESPACO (Festival Panafricano de Cinema e Televisão) que acontece de dois em dois anos em Ouagadougou, capital de Burkina Faso.
Já em relação aos filmes, nas primeiras duas décadas é possível ver duas “correntes” distintas – uma mais ligada a um filme mais “realista” em termos formais e preocupado com questões sociais e políticas e outra mais ligada a uma forte experimentação formal, porém também ligada a temas em voga no contexto do pós-independência. A partir da década de 1980 até hoje, há uma pluralidade cada vez maior de estilos, deixando mais difícil qualquer categorização na região. Por isso, afirmamos que há cinemaS africanoS.
ImprenÇa: É possível fazer algum tipo de relação destes filmes com o cinema nacional da década de 50 e 60 ?
Tiago Castro: As cinematografias africanas e latino-americanas e brasileira se aproximaram, como em nenhum outro período, durante as décadas de 1960 e 1970. O contexto histórico da Guerra Fria aglutinava grande parte da América Latina e da África sob a égide de “Terceiro Mundo”, termo que logo depois se desdobraria na noção de “Terceiro Cinema”. As nascentes cinematografias africanas, preocupadas com um cinema que discutisse as questões pós-coloniais, conjuntamente com realizadores e grupos do cinema político latino americano discutiam tendências e projetos de renovação e ruptura, em torno de ideias como o a democratização da estruturas cinematográficas, a reinvenção estética condizente com as condições periféricas, o anti-imperialismo e a “descolonização da mente”.
Os diversos festivais e encontros internacionais (por exemplo, os encontros do Comitê do Cinema do Terceiro Mundo em Argel em 1973 e em Buenos Aires em 1974), a criação de arquivos (a Cinemateca do Terceiro Mundo em Montevidéu; o Instituto do Terceiro Mundo da Universidade de Buenos Aires) e o intercâmbio entre cineastas (lembremos a ida de Ruy Guerra e José Celso para Moçambique) dão conta de um projeto sociocultural e político intercontinental que se materializava no cinema.
No Brasil você pode ver um movimento como o Cinema Novo preocupado com um um novo fazer cinematográfico, se afastando das convenções clássicas-narrativas do cinema europeu e norte americano. É muito comum você ver cineastas brasileiros nesse momento falando sobre lutar contra o imperialismo e o colonialismo, por exemplo. O mesmo acontece nos países africanos nesse período.
Enfim… são muitas conexões e histórias que foram um pouco esquecidas pela História – já tivemos uma aproximação cultural muito forte com o continente africano que foi se perdendo aos poucos. Cabe aos interessados retomar essa História e o cinema é um ponto de partida fundamental para isso.
Serviço:
Mostra Grandes Clássicos do Cinema Africano
Local: CAIXA Cultural Rio de Janeiro – Cinema 1
Endereço: Av. Almirante Barroso, 25, Centro (Metrô e VLT: Estação Carioca)
Telefone: (21) 3980-3815
Data: de 14 a 26 de novembro de 2017 (terça-feira a domingo)
Horários: Consultar programação
Ingressos: R$ 4 (inteira) e R$ 2 (meia). Além dos casos previstos em lei, clientes CAIXA pagam meia.
Lotação: Cinema 1 – 78 lugares (mais 3 para cadeirantes)
Bilheteria: terça-feira a domingo, das 13h às 20h
Classificação indicativa: Consultar Programação
Acesso para pessoas com deficiência
Patrocínio: Caixa Econômica Federal e Governo Federal