“Se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório, um labirinto. Seja atropelado por esse trem da morte. Vá ver as cobaias de Deus!”
Cazuza
Pessoal, não sei ao certo por quanto tempo estarei limitado, o fato é que amanhã serei submetido à minha 20ª cirurgia , a primeira de uma série de três ou quatro até o final do ano. Aguardem bolão sobre o local da 24ª, o vencedor ganhará um prêmio especial do blog. Enfim, mais uma patologia comumente encontrada entre idosos e a certeza cada vez mais presente de que o futuro virou coisa do passado e que meu corpo físico está envelhecendo antes do tempo. Lipodistrofia, osteoporose, problemas de ereção, cânceres, demência e agora catarata. Acabo de completar 50 anos de idade, mas meu corpo me diz que tem 70. Ainda bem que o espírito se renova a cada dia e a pele não foi atingida pelo amadurecimento precoce, isso balanceia a situação e permite tocar em frente.
Quando o coquetel chegou e percebemos que ainda não seria hora de embarcar, cada qual para sua dimensão, aceitamos o fato de que teríamos conseqüências pelo uso continuado de medicamentos potentes e que sequer completaram o processo formal para sua aprovação. E aí não vai uma crítica, não fosse essa celeridade não haveria o Carga Viral. Igualmente sabemos que a covivência por longo tempo com organismo invasor tão ardiloso nos modificaria de alguma maneira, não há casa que não se molde a seu inquilino, em algum aspecto ou intensidade. E, mesmo o governo e a ciência sabendo disso, ainda ouvimos de gestores, profissionais de saúde e até de alguns médicos a pérola da comodidade:
– Vocês estão envelhecendo como todo mundo.
Não é o que diz pesquisa da UFRJ, já mencionada em artigo meu na folha de S. Paulo e comentada neste blog, onde o crescimento de óbitos por problemas cardiovasculares foi de 0,8% entre pessoas que não têm o vírus HIV em seu corpo ao passo que entre pessoas vivendo o índice salta para 8%¨ao ano. Igualmente díspares são os de cânceres, 8% contra menos de 3%. Também não é o que retrata pesquisa do Instituto de Traumatologia e Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo, do qual sou cliente há onze anos, de que 16% das pessoas vivendo com HIV têm sérios problemas ósseos como osteoporose e osteonecrose. Também não é bem um envelhecimento natural vermos mulheres entrando na menopausa antes dos 30 e homens da mesma idade passando por frustrações sexuais que sequer eram consideradas antes dos 60. E não são poucos nem poucas, o desequilíbrio hormonal é uma das características dessa nova fase da epidemia, a fase pós coquetel.
Como está o estado de espírito dessas pessoas? As que foram levadas a uma situação de deficiência estão tendo acesso aos serviços de saúde e a outros mecanismos sociais? A referência e contra referência com outras disciplinas médicas como oncologia, cardiologia e ortopedia está sendo satisfatória? E a prevenção a esses agravos, como está? Onde estão os dados sobre a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV? Estão empregadas ou engrossaram as estatísticas de desemprego? ONDE ESTÁ O INTERESSE NA QUALIDADE DE VIDA DAS PESSOAS VIVENDO COM HIV? Já disse, sabemos que assinamos um contrato com o imponderável, mas esperamos uma pronta reação do governo e da sociedade civil para essas questões. Afinal, a portaria da lipodistrofia, antiga conhecida, sequer está implementada em boa parte do país.
Os dados estão saindo, ao menos isso. Até pouco tempo era apenas nossa percepção e nossa indignação que rasgavam espaços em aberturas de congressos e em reuniões com gestores e SEMPRE FORAM NEGLICENCIADAS sob o argumento de que não havia dados a respeito. E agora, qual será a desculpa, tanto do Estado quando da sociedade civil organizada para varrer os efeitos colaterais para debaixo do tapete? Não dá mais para conviver com o princípio de que estamos vivos e que, dadas as perspectivas anteriores ao coquetel, isso deveria nos bastar.
Queremos de volta a URGÊNCIA na solução de problemas da AIDS.
Queremos a CURA.
Queremos qualidade de vida.
Queremos editais de pesquisas que revelem como está ela está, mas que não sejam tecnicistas, onde nem médicos se atrevem a se inscrever.
Queremos eventos científicos a respeito do assunto com nossa participação em todos os passos da organização. Nada sobre a gente sem a gente.
Queremos, sobretudo, que nossa voz seja ouvida. Mas… Que voz? Quem deveria gritar está ocupado demais discutindo eventos e projetos.
E que seja respeitado o Código de Nuremberg. Afinal, não somos cobaias de Deus. Somos cobaias a serviço da humanidade e da evolução científica.
Beto Volpe