Na rua José Bonifácio, 137 {{centro de São Paulo, capital}}, existe uma ocupação da Frente de Luta por Moradia {{FLM}}. Este blog chama de ocupação e não de invasão por simples motivos: você não invade algo que não tem dono, abandonado; e você não criminaliza um movimento social quando diz ocupação.
Pois bem, o prédio localizado na rua José Bonifácio, 137, estava abandonado há anos. O movimento ocupou o prédio e fez um acordo com o quase-proprietário do imóvel {{“quase” porque o prédio está judicialmente interditado e sendo repassado à prefeitura}} e está no imóvel há 3 anos, enquanto aguarda o final do processo, em que a prefeitura provavelmente comprará o imóvel e repassará à moradia popular. Mas o caso não foi na José Bonifácio, 137.
Pois eis que os moradores da ocupação já consolidada {{ou seja, bem sucedida}} acordam sobressaltados no meio da noite com um barulho que os coxinhas chamariam de algazarra, mas que nós chamaremos aqui apenas de zona mesmo. E foram verificar.
Há um galpão, aparentemente abandonado, ao lado do prédio, de onde vinha todo o barulho. Preocupados, os moradores chamaram a coordenação da ocupação {{cada local ocupado tem, pelo menos, uma liderança responsável, que é a coordenadora – ou coordenador}}, que foi checar o que acontecia. Não era uma nova ocupação em andamento, mas uma invasão, simples e pura. Isso porque as pessoas que ali entraram {{os moradores falaram de aproximadamente dez}} não tinham nenhuma intenção de permanecer ou ocupar o local.
Segundo os moradores, houve a preocupação de que os estragos no galpão fossem atribuídos ao movimento de moradia {{e considerando a inexistência de preparo adequado da PM de São Paulo, é bem provável mesmo}}, de modo que eles decidiram entrar no galpão também. Lá dentro, houve uma negociação e as pessoas saíram. O galpão estava aberto.
Diante disso, a FLM resolveu ocupar o galpão também. E como caldo de galinha e cautela nunca fizeram mal a ninguém, a coordenação do movimento decidiu ir, por conta própria, fazer um Boletim de Ocorrência contando o ocorrido. Ao mesmo tempo, cerca de 100 pessoas – entre elas idosos, crianças e refugiados – permaneceram no galpão.
Este blogueiro que vos escreve acompanhou a coordenação na delegacia. O delegado “Dr” Marco Antônio Duarte recebeu o movimento com a simpatia usual da Polícia às 2 da madrugada. Ouviu todo o relato e desatou a repetir {{feito um tucano papagaio}}: espúrio possessório! Isso é esbulho possessório! Espúrio possessório!
Enquanto eu metia um Google para entender do que é que estavam sendo xingados os líderes do movimento {{afinal de contas, um xingo novo é sempre relevante!}} o próprio “Dr” tratou de esclarecer que espúrio possessório é quando alguém entra na propriedade de outro alguém. Ele estava querendo fazer um boletim de ocorrência criminalizando o movimento. Na realidade, o termo é esbulho possessório, ou pelo menos, deveria ser…
Não me interessa se tem ou não função social, não sou eu quem tem que ver isso. Vocês estão me contando que cometeram um delito, quem decide o que vai no Boletim de Ocorrência sou eu e é isso que vai constar se vocês quiserem mesmo fazer.
A coordenação então perguntou como denunciar a falta de função social do imóvel e obteve a lacônica resposta: “sei lá, na Prefeitura, no Ministério Público, não sou a melhor pessoa para responder isso”.
Delegado espúrio {{viu só, que divertido!}}, pensei comigo enquanto ele discursava a respeito da importância da propriedade privada no mundo e de como ele daria a vida para proteger gente que paga ele mal para continuarem ricos {{ok, talvez ele não tenha dito exatamente assim, mas foi como interpretei e você, pobrezinha, não tem outra opção, vai ficar com essa versão mesmo}}.
Tudo certo, nada resolvido, as lideranças retornam ao galpão. Os jornalistas ficam no imóvel ao lado, entre conversas e cochilos até serem avisados: “A PM está aí!”. Que era, na verdade um eufemismo para: “caralho, metade da PM de São Paulo está aí na porta!!”
Descemos, este repórter e os fotógrafos Rodrigo Zaim {{R.U.A Fotocoletivo}} e William Oliveira {{Coletivo Mira}}, para checar a situação… A PM já havia arrombado uma porta {{não a mesma aberta pelos 10 desconhecidos no início da noite, ou seja, ajudaram a depredar ainda mais o local}}, conforme mostra a foto:
Os ocupantes do galpão, acordados no susto, pediram para que a PM esperasse a liderança do movimento para negociar uma possível saída, coisa que foi negada pelos policiais. Parte da guarnição da PM {{guarnição é legal de usar para se referir à PM porque lembra porção daquelas de restaurante ou boteco, manja?}} entrou com marreta e spray de pimenta. Derrubaram uma porta e foram entrando com o cartão de visitas – pimenta – para alegria geral dos fascistas de plantão.
Eram 5h20 da manhã, ainda turno do “Dr” Marco Antônio, o que leva esse blogueiro a pensar que foi ele mesmo, o delegado, quem acionou a PM para o local. A questão é que o proprietário do galpão não estava presente, a PM agiu completamente por conta própria.
E pela manhã veio a parte surreal da história: O proprietário do galpão (que pertence ao Sindsep) apareceu no local e conversou a liderança da FLM, que explicou o ocorrido. O proprietário agradeceu a direção do movimento, marcou uma reunião para conhecer melhor quem é a Frente de Luta por Moradia e não criminalizou nenhuma liderança. Ou seja, a PM agiu por si e para si.
Até quando o direito à propriedade será mais importante que o direito à moradia não é possível dizer. Mas que a propriedade tem também suas posses, isso fica claro a cada ação da PM. As crianças da foto abaixo, apesar de todo spray de pimenta utilizado, passam bem e não tiveram maiores complicações respiratórias.