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Aviso: Este texto tem spoiler a milhão, se ainda não assistiu ao filme “Que horas ela volta” é melhor parar por aqui, ou depois não vem me cobrar.

Fui assistir ao Que horas ela volta, direção e roteiro de Anna Muylaert, e arriscaria dizer que a melhor cena do filme se passa quando as luzes do cinema se acendem e é possível ver o sorriso indigesto de parte dos espectadores obrigados a lidar com a arte imitando a transformação que a realidade da doméstica brasileira teve nos últimos anos. Ela tem tomado sua vida para si. Ela não volta mais não.

O roteiro começou a ser escrito há 20 anos {{não acredite em mim – Brasileiros}}, mas, nos últimos 10, o cotidiano da empregada doméstica mudou e mudou demais. A expansão da linha de crédito como forma de estímulo ao mercado interno, o aumento real do salário mínimo – e portanto do poder de compra, o incentivo à casa própria… Sem falar dos avanços no campo político-ideológico, como os momentos em que a empregada sai mais arrumada no fim de semana, para curtir um momento em que ela é o centro de sua própria vida {{Acorda, menina!! Pode isso não}}.

Impossível sair do cinema sem pensar nos diversos paradoxos de comportamento que os personagens trazem, como espelho do conflito de gerações, da luta de classes e da crise nas relações interpessoais que vivemos diariamente. Val é a figura da babá / empregada doméstica / faz tudo, que não reclama da falta de conforto nem do salário baixo porque, para ela, aceitar seu nível de vida em condição inferior aos patrões é um processo natural, inculcado em sua própria consciência. Ela representa milhares de empregadas domésticas brasileiras, exploradas pelo trabalho, mas consideradas “praticamente da família”, desde que permaneçam em seu espaço de exclusão.



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Mas sua filha Jéssica, recém chegada a São Paulo, representa uma outra geração, que não se acha inferior e não aceita regras que não possa questionar. Ela é o retrato da geração que quer mais, porque teve melhores condições de emprego e renda {{bolsa família, prouni, expansão universitária, etc.}} e agora está em fase de formação, o que a faz quebrar paradoxos sociais e conquistar espaços menos desiguais. A própria diretora do filme fala da dificuldade em abordar essa transição:

“Durante muitos anos, no início desse roteiro, a Jéssica vinha para São Paulo como um clichê da filha da empregada, fragilizada, sem educação. Vinha para tentar ser cabeleireira, mas nem isso conseguia e virava babá no final. Quando sentei para a última reescritura, estava a fim de dar um novo rumo para esta personagem e sua mão. Queria um final com mais esperança, queria quebrar com essa maldição. Mas não sabia como e me debati por semanas até que uma noite me veio a ideia: Jessica já chega como cidadã, ela vem prestar vestibular para a FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). A própria história já dizia tudo. Essa inversão era forte o suficiente porque lida com os preconceitos de quem assiste ou com as esperanças – depende de onde você esta situado em relação à porta da cozinha.” {{não acredite em mim – Anna Muylaert }}

A complexidade das personagens femininas do filme vem da não-caricatura nas reações esperadas. Val representa as minorias, que, sabemos bem, são maioria neste país {{piadinha, não se preocupe, tá tudo bem}}. De sangue forte pernambucano {{que nem o Lula #podemostirarseacharmelhor}}, ela é a trabalhadora brasileira que, diferente do que mostra o clichê de quase todas as telenovelas nacionais {{leia-se Globo}}, é forte e porreta, ainda que esteja sob regras que a põem em um papel de invisibilidade social.

E é quando os costumes da família classe média começam a ser quebrados, que o submundo da empregada doméstica passa a ser um universo de possibilidades que invadem a casa grande através de Jéssica, fazendo tudo sair do lugar. O comportamento velado da patroa Bárbara, por exemplo, consegue disfarçar seu preconceito apenas até o momento em que a nova realidade brasileira ultrapassa a porta da cozinha para mostrar que, neste momento de transição política e econômica, ela vai ter que conviver com novas protagonistas sociais {{SPOILER fora das telas: aposto 10 dilmas que depois que Val saiu de casa, Bárbara achou difícil achar outra escrava moderna e foi uma das que bateu panela em março}}.

O filme não fala, mas é de um prazer quase Cunhístico maligno imaginar a reação da Bárbara à PEC das domésticas. Seria provavelmente um comentário como esse:

O preconceito revestido de preocupação. Onde já se viu, tratar a doméstica como trabalhadora, com direitos e deveres? Onde já se viu, a filha da empregada lutar por ascensão social?

PEC das Domésticas

Mas fato é que, em todo o Brasil, nossas Vals e Jéssicas têm tomado consciência de sua própria história e infringido a distância de segurança entre ricos e pobres, o que incomoda e muito. A demarcação de até onde os dois universos podem transitar não é mais a porta da cozinha. E mais, a filha da empregada pode ir além destes espaços domésticos, ela vai estudar e entrar na faculdade {{SPOILER final -> Mesmo que o filho da patroa não consiga. Sesseeeenta e oito! Chuuupa, Fabinho. Sobe os créditos.}}.

Nota sobre os personagens masculinos do longa: Nada a falar, até porque, me recuso a analisar um playba que tem 18 anos nas costas e ainda pede pra dormir com a babá, e um intelectual burguês que acha que é legal ser o tiozão da Fanta no elevador da vida em pleno 2015.

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