Lugar de Fala: o conceito e a lacração
Na ânsia de vencer discussões e lacrar na internet, diversos grupos têm utilizado o lugar de fala e seu conceito como forma de calar o interlocutor. E mesmo correndo o risco de ter este texto tachado como “mimimi” de branco, falaremos disso.
O conceito de lugar de fala foi pensado inicialmente por feministas negras, por volta dos anos 80, sobretudo por Patricia Hill Colins, cuja ideia não é calar ninguém, mas sim quebrar com a ideia de uma única voz falando sobre um assunto.
Mas em tempos de curtidas, compartilhamentos e uma necessidade extrema de aceitação e busca por destaque, nem sempre essas necessidades têm ido de encontro com aquilo que foi pensado originalmente. E isso vale para todxs.
Ainda que pareça absurdo, é preciso dizer o óbvio: brancos e negros não falam sobre o racismo da mesma forma. Brancos, por óbvio, nunca sofreram racismo, estão numa posição de privilégio e devem reconhecer essa posição ao falar {{ou calar}}. Já os negros, por sua vez, estão em uma posição de histórica exclusão {{que segue presente}}. A mesma coisa se aplica com heteros e gays, homens e mulheres, e por aí adiante.
Quem explica melhor essa diferença entre conhecer um problema e vivenciá-lo é Marcia Tiburi, uma acadêmica brasileira feminista. Ela cita o lugar de dor para diferenciar do lugar de fala: “Aquele que é marcado como minoria, carrega a sua dor e toda dor deve ser respeitada. Mas para que o lugar da dor se torne lugar de fala, é preciso articular a dor, reconhecê-la, colocá-la em um lugar político, aquele lugar onde o outro está incluído como um sujeito de direitos que também tem a sua dor”.
Não é possível falar do lugar de fala sem pressupor o diálogo enquanto reconhecimento do outro. Por isso é que se torna necessário separar o lugar de fala do lugar da dor. O lugar da dor é de cada um e em relação a ele só podemos ter escuta. Já o lugar de fala é o lugar democrático em relação ao qual precisamos de diálogo, sob pena de comprometer a luta.” Marcia Tiburi, para a Revista Cult {{não acredite em mim}}
Assim, a questão toda se concentra no silêncio, e não nas falas. Ou melhor, no ato de silenciar. Não é preciso ser negro {{ou mulher, ou gay, ou indígena}} para saber que um homem branco hetero sempre terá mais oportunidades de falar e ser ouvido do que uma minoria social {{econômica?}}.
Brancos nunca foram escravizados no Brasil. Na verdade, este ImprenÇa mesmo apresentou em matéria que a diferença de escolaridade entre brancos e negros no Brasil só começou a mudar a partir da lei das cotas, nos anos 2000. Ou seja, até bem pouco tempo atrás, a média de escolaridade entre brancos era proporcionalmente tão superior à média de escolaridade dos negros quanto na época em que a escravidão era oficialmente permitida.
Ignorar essa questão é sempre um problema. De Educação, de empatia e de humanidade em muitos casos. Foi pensando nesta lógica – que não é produto exclusivamente nacional – que se encontrou o conceito de lugar de fala. Ele é um termo em sua essência acadêmico, de alguém {{alguéns}} que entenderam isso, estudaram e formularam uma proposta para que as discussões fossem horizontais e não reproduzissem a lógica de poder vigente na sociedade que, em tese, queremos mudar.
O óbvio, ou o que deveria ser óbvio é a luta por um sistema social igualitário no sentido primeiro da palavra. Onde oportunidades e riscos sejam literalmente iguais aos seres todos. Uma busca utópica, feita de caminhos reais. E nessa busca, a necessidade de encontrar diálogos nos quais os falantes sejam capazes de argumentar e serem desmentidos por seus argumentos.
No meio acadêmico, pelas razões já colocadas, é muito difícil encontrar essa igualdade de poder de fala, já que os grupos socialmente privilegiados sempre tiveram mais oportunidades. E como a busca acadêmica é também a busca por conhecimento, brancos começaram a falar sobre racismo, heteros a falar sobre homofobia e homens discorreram sobre machismo. E foi para garantir as falas de grupos menos privilegiados que se difundiu o “lugar de fala“. Foi para evitar que um negro fosse impedido de falar sobre racismo, por exemplo.
Djamila Ribeiro, importante intelectual e militante feminista negra, fala bem sobre o assunto em entrevista à Caros Amigos de maio deste ano, exemplificando o próprio movimento feminista:
“Eu falo também pro movimento feminista, sou totalmente contra a visão de que não tenha que falar com homem. Se ele está oprimindo a gente, matando a gente, ele tem que entender isso, que ele não pode fazer isso. Isso significa dizer que o homem vai pegar o microfone e falar por mim? Não. Quer dizer que ele, nos espaços dele, tem que se pensar como homem. O que significa ser homem? “Eu tenho que cuidar da criação dos filhos tanto quanto a minha companheira”, “eu não posso assediar uma mulher”, “se eu tô num espaço com os amigos, eu vou falar que determinada postura é assédio”, “se eu sou professor eu vou trazer sistemas para dentro do espaço que eu atuo”… Então como ele pode usar esses espaços, não é? Isso não necessariamente é chegar num evento feminista pegar o microfone e falar.” – Djamilia Ribeiro em entrevista à Caros Amigos {{não acredite em mim}}
A ideia é a de que todos falam a partir de sua própria identidade e experiência pessoal. Um negro vivenciou o racismo de forma absolutamente diferente de um branco. Um branco não sofre racismo, mas isso não significa que não tenha vivenciado o racismo, são fatos e conceitos diferentes. Eu posso ver um amigo sendo discriminado ou humilhado e ter uma experiência do conceito de racismo diferente da dele, que sofreu na pele. É a isso que Márcia Tiburi se refere como lugar de dor.
Conceito de Lugar de Fala
O que tem ocorrido, no entanto, é que o conceito de lugar de fala vem sendo modificado, não para garantir a fala de grupos socialmente excluídos, mas para proibir a fala de outros grupos. E embora seja absolutamente razoável que um grupo oprimido escolha não ouvir o grupo opressor em nenhuma ocasião, dizer que é por conta do “lugar de fala” é desconhecimento. Ouvir grupos socialmente opressores é uma escolha a ser feita por cada movimento, lideranças e militância, mas esta escolha não se deve ao lugar de fala.
Sobre a origem da expressão “lugar de fala” (“lieu de discours”, “place of speech”), creio que se encontre em Jacques Lacan (1901 — 1981)
O “lugar de fala” é um termo que aparece com frequência em debates entre militantes de movimentos identitários de esquerda, como feministas, negros e LGBT; ele é um argumento comumente utilizado por grupos que, diz-se, historicamente tiveram menos espaço de expressão. A ideia é que apenas membros desses grupos possam argumentar sobre determinados temas que digam respeito a esses grupos ou que apenas os argumentos dos membros de tais grupos seriam válidos ou verdadeiros. Contudo, segundo o professor Pablo Ortellado, o chamado Lugar de Fala seria uma modalidade de Ad Hominem abusivo:
“(…) o lugar de fala indiretamente reforça na esquerda os argumentos “ad hominem”, interrompendo uma tradição progressista de racionalismo esclarecido. Os argumentos “ad hominem” são falácias condenadas desde a antiguidade clássica porque desqualificam quem fala para não precisar discutir o teor do que diz o adversário. Quando o movimento social condena discursos sobre a opressão que não são enunciados pelos próprios oprimidos, de certa maneira ele resgata e legitima uma modalidade de argumento ad hominem. (Pablo Ortellado)” [5]
Ou seja, imaginar que a posição social ocupada por um sujeito ou suas características físicas ou psicológicas tornariam os argumentos do mesmo válidos ou inválidos, verdadeiros ou falsos seria um claro exemplo de falácia ad hominem.
A preocupação é em sublinhar e chamar a atenção para as características pessoais do debatedor no lugar de se analisar seus argumentos.
Exemplos:
“As afirmações de Richard Nixon a respeito da política de relações externas em relação à China não são confiáveis pois ele foi forçado a abdicar durante o escândalo de Watergate.”
“Pessoas brancas não podem falar sobre racismo, pois elas são brancas e não tiveram tal experiência subjetiva”
“Homens não podem falar sobre machismo, pois são homens e não tiveram tal experiência subjetiva”
O mesmo vale para outros casos semelhantes em que se sublinham as características pessoais e as experiências subjetivas do debatedor no lugar de se tentar refutar seus argumentos e apresentar contraprovas às evidências que ele apresentou.
Lugar de fala é ad hominem.
Um argumento não se torna verdadeiro ou válido por conta das características pessoais de quem argumenta
Recomendo a leitura desse artigo e de outros, se você puder, pois é muito superficial qualificar o lugar de fala como ad hominem.
https://medium.com/@yasminimoye/lugar-de-fala-ou-ad-hominem-88bd5c5082e0
O artigo de Yasmin Imoye longe de defender o Lugar de fala da acusação de ser uma Falácia Ad Hominem, só o comprova, pois ela se focou no termo “hominem” da falácia, para denunciar que o conceito de falácia ad hominem é machista por conter o termo “hominem”, e procurou desqualificar a sociedade da Grécia Antiga e seus intelectuais acusando-os de machistas que excluiam as mulheres do debate publico. E nos ultimos dois paragrafos do artigo, ela procurou reabilitar a falácia Ad Hominem dizendo que é valido julgar a pessoa que o escreve, principalmente se for um grupo opressor. Mas ela não conseguiu refutar o conteudo da acusação de falácia adhominem que é: “atacar a pessoa que diz tal argumento, em vez de atacar o conteudo do argumento. Estratégia para desqualificar o oponente pondo em duvida seu carater e suas motivações. Um argumento não se torna errado, se a pessoa que o diz tem carater duvidoso ou não” Estratégia muito comum de quem não tem argumento e não consegue refutá-lo. Yasmin Imoye preferiu atacar as pessoas e a sociedade da Grécia Antiga, acusando-a de ser machista e excluir a mulher no debate publico, e se focar no termo Hominem do argumento, do que se focar no conteudo do que é a falácia. Conclusão, o texto de Yasmin Imoye é uma falácia Ad Hominem.
A ideia de que o que deve ser atacado é o argumento e não quem argumenta não foi tocado por esse texto estúpido.
Lugar de falá é falácia de ataque à pessoa.
É usado para desqualificar quem argumenta e não o que está sendo argumentado.
É o famoso “cala a boca” muito apreciado por autoritários
Recusar um argumento com base na sua fonte é cometer uma falácia chamada ad hominem que consiste em atacar o autor do argumento e não seu conteúdo. É uma forma barata de desqualificar uma ideia sem ter que pensar nela. Se o que você defende tem algum cabimento, você não precisaria utilizar esse tipo de desqualificação, e sim contra-argumentaria com base no que foi colocado. Lembre-se: quando um argumento é colocado, não interessa quem disse; atacar quem falou não tem valor de discussão e quem recorre a este tipo de falácia geralmente não está interessado na verdade, mas apenas em “vencer” a discussão.
Chega a ser patético que as verdades sobre as questões sejam eleitas com base não na apuração de conhecimentos estudados, mas sim na autoridade de quem disse, como tantas vezes na história da humanidade se recorreu à figura do sacerdote, do sábio, e mais recentemente na figura do especialista. Só que agora a autoridade emana do oprimido. Basta ser marginalizado que o sujeito já pode nos oferecer a maneira pela qual nós devemos entender o mundo. A experiência dela vale, a dos outros não, há uma hierarquia nas experiências das pessoas, bem diferente do que os pós-estruturalistas disseram.
Só falta esses militantes fazerem uma tabelinha das opressões para saber quem diz a “verdade”. Assim, João tem um argumento A e Maria tem um argumento B. A princípio, pode parecer que Maria é que diz a verdade, porque ela é mulher, mas aí descobrimos que João é Negro. E agora? Ah, mas a Maria também é negra, ela tem duas opressões, portanto é ela quem diz a verdade. Só que João além de negro é gay e paraplégico, ele tem mais opressões, tem mais vivência, portanto a vitória é do argumento dele. Vemos como a veracidade do argumento nada tem a ver com o argumento.
velho, vai usar o seu nome verdadeiro, ta usando meu nome aqui pq??
Essa pessoa está se passando por Adriana Stolfi, os administradores já foram avisados para retirar os comentários. Fui informada que seria apagado mas até o momento não foi.
Encontrei outros links com o mesmo comentário sendo feito em meu nome e de outras pessoas o que me faz acredita que seja algum troll.
Você não é a única Adriana Stolfi do Brasil, querida.
Seria a mesma coisa que alguém fica brava porque alguém usou o nome Adriano Ferrari. Meu nome é Adriana Stolfi também
Mesmo se o que determinasse a nossa visão de mundo fosse a nossa posição social, como nos diz a Djamaluca Ribeiro, isso ainda não tornaria o lugar de fala verdadeiro.
Pois, uma coisa é dizer “nosso lugar no mundo determina nossa percepção do mundo”. Outra, bem diferente, é dizer “nosso lugar no mundo torna automaticamente nossas proposições (argumentos) sobre assuntos x ou y verdadeiras e válidas”.
Mesmo se a primeira premissa fosse verdadeira, ela não torna a segunda verdadeira.
Ser negro não torna seus argumentos sobre as questões sobre racismo automaticamente verdadeiras ou válidas.
Ser mulher não torna seus argumentos sobre as questões sobre machismo automaticamente verdadeiras ou válidas.
Alén disso, de acordo com o “lugar de fala”, se um africano disser que o que causa chuvas é o Olodumaré tocando tambor um branco tem de aceitar em vez de impor sua ciência colonizadora que diz que a chuva é causada por acúmulo de gotículas de água?
E se uma pessoa branca discordar de algo que a Djamaluca diz, então ele não pode contra-argumentar, pois, se assim fizesse, seria racista e opressor?
E se um negro discordar da Djamaluca, ele tem de ficar quieto, pois, caso contrário, seria um “capitão do mato”?
Nossa, bela maneira autoritária de defender suas ideias: se um branco discorda, é racista. Se um negro discorda, é capitão do mato.
quem PORRA é vc usando meu nome pra falar merda na internet?
A história da Fundação Ford, ligada ao movimento negro brasileiro:
“As origens: de 1936 a 1945
Em uma cerimônia solene ocorrida na cidade de Dearborn, em Michigan, nos Estados Unidos, no dia 30 de julho de 1938, o cônsul da Alemanha acreditado em Cleveland, Karl Krapp, e seu congênere em Detroit, Fritz Heller, presentearam o industrial estadunidense Henry Ford pelo dia do seu aniversário. A pedido do führer, ofereceram-lhe a Grã-Cruz da Ordem da Águia Alemã (Großkreuz des Deutschen Adlerordens). Essa alta condecoração do Estado alemão havia sido criada no ano anterior por Adolf Hitler com o intuito de homenagear estrangeiros que desfrutavam da sua admiração. Outros dois indivíduos que receberam a referida medalha honorífica foram Benito Mussolini e o espanhol Francisco Franco.
Adolf Hitler há muito manifestava uma forte simpatia por Henry Ford e manteve uma foto dele em seu escritório em Munique. No início dos anos 1920, Henry Ford escreveu execráveis escritos antisemitas, os panfletos The International Jews: The World`s Problem, transformados ulteriormente em livro e que inspiraram o líder nazista na sua perseguição implacável aos judeus na Europa. Traduzidos para a língua alemã, os escritos de Ford tiveram ampla circulação nos meios nazistas antes de 1933. Por essa razão, a primeira edição de Mein Kampf Hitler, dedicou a Henry Ford.
Afora as concepções lunáticas da existência de uma conspiração judaico-comunista internacional contra a qual ambos lutavam, a admiração de Hitler por Henry Ford advinha também dos métodos de racionalização industrial. Essa racionalização serviria como exemplo tanto ao modelo industrial do Reich, como ao sistema, igualmente fabril, de extermínio bárbaro de milhões de pessoas em campos de concentração, a exemplo de Auschwitz, Sobibor e Treblinka.
Desde os anos 1920, Ford vinha contribuindo com o financiamento do Partido Nacional-Socialista na Alemanha e enviava de 10 a 20 mil marcos alemães como presente de aniversário para Adolf Hitler todos os anos, até 1944. [3] Nos Estados Unidos, Henry Ford manteve um sistema conhecido pelos críticos como a “Gestapo de Ford”, o que também lhe rendeu o apelido dado pelo New York Times, em 1928, de “Mussolini do Highland Park”.[4]
Ford, além de perseguir e reprimir sindicalistas, organizou um sistema de vigilância e controle da vida privada de seus funcionários, por meio da criação de um Departamento de Sociologia da Ford Motor Company. Tal órgão procurava intervir nos aspectos privados dos trabalhadores das fábricas, como moradia, alimentação, lazer e modo de vida. Ford até mesmo contratou um ex-pugilista que serviu como “fiscalizador” do serviço privado de repressão política e social aos trabalhadores da Ford em Dearborn e que lhes fazia visitas inesperadas em seus lares. [5]
A condecoração de Henry Ford com o maior título honorífico dado a estrangeiros pelo governo nazista nada mais foi do que um reconhecimento inter pares. Dois anos antes, no início de 1936, Edsel Ford, filho de Henry Ford e então presidente da Ford Motor Company anunciou a criação da Fundação Ford, que tinha por objetivo dispender recursos “à caridade, à educação e à ciência”. Mas, de fato, a criação da fundação filantrópica familiar servia a interesses econômicos muito claros aos contemporâneos.
Em 1934, um grupo de empresários, banqueiros e oficiais militares estadunidenses patrocinaram uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente Franklin D. Roosevelt, golpe esse que visava à instauração de um regime filofascista nos Estados Unidos.[6] Malfadada a tentativa de golpe contra Roosevelt e no contexto econômico do New Deal, em 1935, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o Revenue Act, uma espécie de taxação de grandes fortunas que chegava à casa dos 70%. [7]
O maior prejudicado com a nova legislação seria justamente a multimilionária família Ford. Para dissimular do fisco a cobrança dos novos impostos foi, portanto, criada a Fundação Ford, transferindo-se, assim, 90% das ações da Ford Motor Co. pertecentes à família para a nova entidade “filantrópica”. Desde então, diferentemente do que se pensa, a Fundação Ford tornou-se a proprietária da Ford Motor Company. [8] Os três únicos diretores da Fundação Ford no período eram Edsel Ford, presidente da Ford Motor Co. e igualmente presidente da Fundação; Bert J. Craig, secretário e tesoureiro da Ford Motor Co; e Clifford Longley, advogado da Ford Motor Co.
Pressionada pelo governo a dar, então, início a qualquer atividade filantrópica de relevo, a Fundação Ford anunciou, em dezembro de 1937, a doação de um terreno em Dearborn, Michigan, EUA, para a construção de quatro mil “moradias modelo” para operários locais. A Ford doou o terreno e o projeto, enquanto a construção ficaria a cargo de outros empresários que tivessem interesse no empreendimento. Originalmente anunciado como filantropia a operários, pelos baixos custos de aluguel ou venda, logo o projeto foi desconfigurado, tornando-se um empreendimento imobiliário de mais alto padrão, com centro de negócios, escolas, clínicas médicas, lojas, entre outros. De acordo com uma matéria da época, a iniciativa passou a beneficiar trabalhadores de “white collar”, conforme a expressão do jornal [9].
Essa foi a única iniciativa “filantrópica” da entidade que teve ampla repercussão antes de 1945. O real interesse por trás da criação da Fundação, i.e., dissimular a fortuna familiar adquirida ao longo dos anos de exploração da classe trabalhadora pela Ford Motor Co., fez com que ela permanecesse inexpressiva nas suas ações “humanitárias” durante os primeiros dez anos de existência. Já na Europa, a Ford Motor Co. mantinha fortes investimentos econômicos desde os anos 1920. Em particular, na Inglaterra e na Alemanha. Neste último, encontrou certas dificuldades decorrentes da ascensão do nacionalismo de ultra-direita no país, uma vez que parte da população sabotava a compra de produtos de empresas estrangeiras. Mesmo assim, a relação com o governo nazista que ascendeu em 1933 era mais amena e a Ford fabricou um terço dos caminhões do exército nazista, por exemplo, e dobrou de tamanho na Alemanha entre 1939 e 1945 [10].
Entre 1941 e 1945, a subsidiária da Ford Motor Co. em Colônia, na Alemanha, a FordWerke, utilizou, inclusive, trabalho escravo de presos estrangeiros e judeus, oriundos da Europa Oriental, da União Soviética, da Itália e da França. A própria Ford Motor Co. em 1998 abriu um amplo processo de investigação interna sobre a conduta da sua subsidiária na Alemanha, provocada por processos legais de sobreviventes do Holocausto que foram movidos contra a empresa por haverem trabalhado como escravos na FordWerke [11].
Esses são alguns poucos e relevantes fatos do período de origem da Fundação Ford. Frente à oposição política que a família Ford mantinha ao governo de Franklin D. Roosevelt, até o final da II Guerra, a Fundação não atuou em parceria com o governo dos Estados Unidos. E suas atividades de caridade restringiam-se a poucas iniciativas em Michigan. A relação estreita com o Departamento de Estado e os órgãos de inteligência estadunidenses passaria a ocorrer a partir do início da chamada Guerra Fria.
Pós-Guerra e Guerra Fria: de 1945 aos anos 1960
Com o término da Segunda Guerra Mundial, grandes empresários e financistas estadunidenses, muitos dos quais haviam apoiado a ascensão do nazi-fascismo na Europa, bem como muitos quadros técnicos do partido nazista alemão, passaram a colaborar com os Estados Unidos num esforço pela hegemonia global e pelo combate à expansão do comunismo. Entre os frustrados com a derrota nazi-fascista encontrava-se a família Ford, que passaria então a atuar junto à política externa dos Estados Unidos a fim de justificar a série de isenções de impostos que obtivera com a criação da sua fundação “filantrópica” em 1936.
Em 1943, porém, faleceu Edsel Ford, o primeiro presidente da Fundação e presidente da Ford Motor Co. O patrono, Henry Ford, faleceu quatro anos depois, em 1947. Por esta razão, as presidências da Fundação Ford e da Ford Motor Co. ficaram a cargo do filho de Edsel, Henry Ford II. Ele é quem vai reestruturar a Fundação Ford, fazendo com que a entidade passasse a atuar na política internacional, como ocorre ainda hoje.
O intuito aqui não é o de enumerar as diversas atividades e financiamentos promovidos pela Fundação Ford ao longo dos anos, porque isso excederia muito os objetivos desse artigo, não havendo, ademais, um levantamento exaustivo dessas atividades. Optou-se apenas pela apresentação de dados dos principais indivíduos que compuseram o staff da Fundação Ford, destacando suas relações com o aparato estatal dos Estados Unidos e seu complexo industrial-militar-acadêmico.
A partir de 1947, no contexto do lançamento da Doutrina Truman, a Fundação Ford passou por uma reestruturação que, em razão da sua expansão à atuação internacional, necessitava operar em parceria com o Departamento de Estado e os órgãos de inteligência dos Estados Unidos, como com a recém-fundada Agência Central de Inteligência, a CIA.
Essas novas diretrizes da entidade foram elaboradas por um conjunto de indivíduos, entre os quais o então presidente da entidade, Henry Ford II, Ernest Kanzler, antigo executivo da Ford Motor Co.,Donald K. David, da Harvard Business School, e Karl T.Compton, presidente do Massachusetts Institute of Technology. Mas, o principal formulador da perspectiva de internacionalização da Fundação foi Horace Rowan Gaither Jr.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Donald David e Karl Compton eram elementos de ligação entre a industria armamentista e as pesquisas acadêmicas nos Estados Unidos [12]. Já Horace Rowan Gaither Jr. era um executivo de corporações privadas ligadas ao Departamento de Defesa e ao Exército dos Estados Unidos, como a RAND Corporation e MITRE Corporation [13].
O primeiro presidente da Fundação, fora dos quadros de diretores da Ford Motor Co.,foi Paul G. Hoffmann. Entre 1948 e 1950, Paul Hoffmann havia sido diretor-chefe da Administração de Cooperação Econômica, organismo que administrava o Plano Marshall na Europa depois da Guerra . No período em que ocupou a presidência da Fundação Ford, apareceram as primeiras denúncias da relação entre a entidade e atividades clandestinas do serviço secreto estadunidense no exterior.
Em dezembro de 1951, por exemplo, o presidente Harry Truman nomeou como embaixador na União Soviética George F. Kennan. Kennan era um especialista em política soviética e foi o formulador da política de “contenção” do comunismo. Em 1944, Kennan já havia composto a embaixada dos Estados Unidos em Moscou. Quando retornou aos Estados Unidos, em 1946, ocupou cargo no Colégio de Guerra e no Departamento de Estado. Entre 1949 e 1950, Kennan “licenciou-se” das suas funções públicas, passando a trabalhar para a Fundação Ford, no seu Fundo do Oriente Europeu para o Entedimento Internacional.
Quando foi novamente nomeado ao cargo de embaixador em Moscou no final do ano de 1951, o Pravda, órgão oficial de imprensa soviética, denunciou Kennan como sendo o responsável pela distribuição de fundos da Fundação Ford para auxiliar “organizações anti-soviéticas” [14]. A nota dizia ainda que o objetivo de tais doações era o de “fomentar atividades clandestinas” no país [15].
Em 1952, com a campanha presidencial do ex-comandante supremo das Forças Aliadas na Europa e ex-comandante supremo da OTAN, o general Dwight Eisenhower, Paul Hoffmann fundou, e igualmente presidiu, a Liga dos Cidadãos Favoráveis a Eisenhower. No mesmo ano, Hoffman trouxe para a Fundação Ford ninguém menos que Richard Bissel, chefe do serviço clandestino da CIA [16] e que havia trabalhado com ele na administração do Plano Marshall. Como membro da agência de inteligência, Richard Bissel era muito próximo de Allen Dulles, que, com a administração Eisenhower, tornou-se o diretor geral da CIA. Bissel recebeu o convite de Dulles para ser seu principal assistente na agência em 1954 e deixou a Ford. [17] Na Fundação, Bissel obteve o auxílio de Allen Dulles e outros altos oficiais colegas seus da CIA na formulação de várias ações da Fundação Ford pelo mundo [18].
Também em 1953, ingressou na Fundação Ford, Frank Lindsay, antigo veterano do OSS – Office of Strategic Service (órgão precursor da CIA). Como Bissel, Lindsay foi um dos primeiros formuladores, em 1947, de técnicas de operações encobertas do serviço secreto dos Estados Unidos. Lindsay foi levado para a Fundação Ford por um de seus diretores, Waldemar Nielsen, também um agente da CIA [19].
Em 1954, foi empossado o novo presidente da Fundação Ford: John McCloy. Antes de ocupar esse cargo, McCloy havia sido Secretário Assistente do Ministério da Guerra dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Depois do conflito, foi Alto Comissário da Alemanha ocupada, foi presidente do Banco Mundial e presidente do Chase Manhattan Bank, pertencente à família Rockefeller. Além de ser diretor de grandes corporações, McCloy foi advogado em Wall Street, representando nessa posição as maiores empresas petrolíferas dos Estados Unidos. Como Alto Comissário da Alemanha ocupada, trabalhou junto com os órgãos de inteligência dos Estados Unidos na Europa no final da Segunda Guerra Mundial, período em que vários quadros técnicos do nazismo passaram a trabalhar para os Estados Unidos [20].
Em 1953, com John McCloy a frente da Fundação Ford, Shepard Stone também ingressou na instituição na área de Relações Internacionais. Shepard Stone havia trabalhado com McCloy como assessor de relações públicas no período em que o segundo fora alto comissário da ocupação da Alemanha depois da Guerra e, depois de ter “recusado” ocupar um cargo na área de operações psicológicas (psy-ops) na CIA, passou a trabalhar para a Fundação Ford [21].
O presidente seguinte da Fundação Ford foi Horace Rowan Gaither Jr. Além de ter sido o responsável pela formulação das diretrizes que estabeleceram o vínculo entre a entidade e o aparato estatal estadunidense em 1947, uma ação sua que vale menção foi que, em novembro de 1957, o presidente Eisenhower encarregou um grupo de cientistas para um estudo, altamente sigiloso, a respeito de possíveis ataques nucleares da União Soviética contra os Estados Unidos. Foi encarregado da presidência do grupo de pesquisadores justamente Horace Rowan Gaither Jr, [22].
O relatório final do grupo, apresentado ao Conselho Nacional de Segurança e ao Departamento de Defesa, previa que, sob risco de uma ameaça nuclear soviética, era necessário um forte aumento dos gastos militares pelos próximos treze anos, ou seja, até 1970,[23], o que fortaleceu a posição do complexo industrial-militar e, em particular, da indústria bélica.
Nesse mesmo ano em que Horace Rowan Gaither Jr. ocupava a presidência da Fundação Ford, em fevereiro, o ministro das Relações Exteriores da União Soviética, Dmitri Shepilov, havia apresentado uma nota à imprensa internacional em Moscou em que denunciava que “organismos oficiais do governo dos Estados Unidos desenvolvem atividades subversivas e de espionagem, sob o disfarce de toda sorte de comissões, fundações e instituições particulares”. A nota citava como cobertura do serviço secreto a Fundação Ford, a Fundação Rockefeller e a Fundação Carnegie. A nota ainda dizia que a chamada “libertação das democracias populares” havia se convertido na “pedra fundamental da política exterior norte-americana” [24]
Depois de H. Rowan Gaither Jr. o presidente da Fundação Ford foi Henry T. Heald, que ficará no cargo até 1965. Não existem muitos dados a respeito da sua relação com o aparato estatal e de inteligência dos Estados Unidos, apenas que era um indivíduo igualmente vinculado ao chamado complexo industrial-militar-acadêmico estadunidense, uma vez que, entre 1940 e 1952, presidiu o Illinois Institute of Technology [25]. Mas é lícito afirmar que essa relação não deixou de acontecer durante sua administração como presidente da Fundação, a exemplo da atuação da entidade no Brasil desde 1961, como se verá na próxima parte do artigo.
Em 1966, McGeorge Bundy tornou-se presidente da Fundação Ford, ficando no cargo até 1979.Imediatamente antes de ocupar a presidência da Fundação Ford, McGeorge foi Assistente de Segurança Nacional dos presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson, cargo que,entre outras funções, tinha como prerrogativa o monitoramento das atividades da CIA.
Bundy também havia trabalhado na organização do Plano Marshall e, posteriormente, como reconhecido intelectual de política exterior nos meios conservadores nos Estados Unidos, a ele e ao irmão também é atribuída a formulação de falsos pretextos que justificaram ao Congresso a escalada militar do país na Guerra do Vietnã em 1964 [26].
No mesmo ano, McGeorge Bundy compôs um comitê do governo para formular ações encobertas no Chile para a eleição de Eduardo Frei.[27]. Seu irmão, William Bundy, era membro do Conselho de Avaliação Nacional da CIA e genro do antigo secretário de Estado Dean Achenson [28]. O fato é que a maior parte dos funcionários de alto escalão da Fundação Ford entre 1945 e 1979 eram ou tinham sido agentes, tinham ligações com agentes ou trabalhavam em profunda conexão com a CIA, com o Pentágono, com o Departamento de Estado e com o alto escalão do complexo indutrial-militar privado dos Estados Unidos. Essas redes de relações do poder imperialista foram estabelecidas durante a Segunda Guerra Mundial e, no pós-Guerra e na Guerra Fria, estenderam-se e aprofundaram-se em decorrência da disputa contra a União Soviética por hegemonia global.
Conforme aponta ainda Frances Stonor Saunders, um dos intuitos principais que movia a relação orgânica entre a Fundação Ford, a CIA e o Departamento de Estado era livrar-se de eventuais embaraços na política interna dos Estados Unidos em relação a ações de inteligência no exterior. As fundações, em particular, a Fundação Ford, e outras entidades privadas, desburocratizavam ações sigilosas (na maioria das vezes ilegais) em outros países, sobretudo, na área cultural e de operações psicológicas (psy-ops), uma vez que não precisavam prestar contas das suas ações ao Congresso do país.[29]”