Escolha uma Página
Espalhe a notícia

*Por Beto Volpe

Naquela tarde ensolarada uma fresca brisa soprava os cabelos de Alice, enquanto ela estendia as roupas no varal apreciando seu jovem filho que saía para a Universidade, graças à cota racial que lhe era de direito. Seu padrão de vida havia melhorado bastante desde que políticas públicas diminuíram a desigualdade social e ela acreditava que um dia seu país seria uma maravilha de se viver. De repente seu vizinho neoliberal, o senhor Coelho, aparece por cima do muro que os separava e grita:

– Corra, Alice, os comunistas estão vindo e tomarão tudo que você tem, sua casa, seu filho, sua liberdade!

Dito isso, saiu correndo e sumiu virando a esquina. Atordoada e sem pensar direito se aquilo era ou não verdade, Alice correu na mesma direção de Coelho e, ao virar a esquina, não percebeu um buraco na calçada e nele caiu. Era um buraco muito profundo e nas paredes ela podia ver kits gays, mamadeiras de piroca, ideologias de gênero e vultos de feminazis e gayzistas. Por fim, caiu em um átrio onde grupos de aeróbica dançavam em honra ao Rei de Espadas, enquanto políticos e youtubers faziam apologia ao armamento da população e vociferavam palavras de ordem racistas, machistas e homofóbicas, enquanto uma epidemia assolava o país de norte a sul, já tendo matado milhares de cidadãos. Alice estava tão desnorteada com tanta informação negativa que se pôs a chorar e chorou tanto que quase se afogou em um mar de lágrimas. Enquanto se secava ela foi abordada pela Lagarta Rosa, a cor das lagartas meninas, a quem ela expôs seu espanto com tanta iniquidade, ao que a lagarta, entre uma e outra baforada em seu narguilé ungido, responde:



Apoie o Jornalismo Independente

– Não tema, Alice, dia desses eu estava comendo folhas em uma goiabeira e ninguém menos que Jesus falou comigo e me disse que essa é a nova ordem nacional e que a família precisa ser preservada. Você pode confirmar isso com o Chapeleiro Guedes.

Alice estava cada vez mais incrédula, ao invés de um país de maravilhas ela estava em um lugar onde imperava o ódio, o preconceito e a falta de respeito com a diversidade em seu sentido mais amplo. Mas ela segue o conselho da lagarta e vai à festa do Chapeleiro em uma região do bosque conhecida como Little Miami. Ao chegar ela logo percebe que ali só tinha gente desequilibrada, começando pelo próprio Chapeleiro Guedes que discursava defendendo o terraplanismo, sob os aplausos dos irmãos Tweedledum, Tweedledois e Tweedletrês. Esses não paravam de espalhar cenas de golden shower e fistfucking pelos celulares, para delírio do Tweedletrês. De repente o Chapeleiro anuncia que estão condenados a parar o tempo para que a partir dali todos vivessem em um eterno passado onde a ciência era o que menos importava.

Alice fugiu em disparada, parando às portas de um imenso jardim, que pertencia ao Rei de Espadas, um homem com um passado medíocre, mas que ascendeu ao trono por conta da inabilidade do rei anterior em se manter íntegro como mandava a constituição que se chamava ‘Terra, Trabalho e Liberdade’ e ao oportunismo de boa parte dos membros da corte e do empresariado, levando o país a uma radicalização que o levou ao posto máximo do poder. Ela reparou que o jardim não tinha flores, apenas ramos repletos de espinhos e ervas daninhas cobrindo o chão e havia uma piscina cheia de ratos, onde acontecia uma reunião ministerial onde se falava de hemorroidas e de onde emergiu o próprio Rei de Espadas. Ao ver Alice ele logo perguntou o que ela fazia ali e Alice respondeu:

– Senhor Rei de Espadas, o seu país está enfrentando uma epidemia mortal que já fez milhares de vítimas e tudo que vejo ao seu redor são pessoas insanas e que não dizem coisa com coisa! O senhor tem ciência que dessa maneira o país das maravilhas irá se tornar uma terra caótica e sem perspectivas de futuro?

Ao que o Rei de Espadas, com o rosto púrpura de ódio, vocifera:

– E daí, sua comunista esquerdopata! Você está querendo tumultuar o país, não existe epidemia, isso é uma gripezinha que todo mundo vai pegar e que pode ser curada com cloroquina! O importante é que todos possam trabalhar e circular como em qualquer democracia, taokei? Você deve ser do Fórum São Paulo e eu vou dar cabo de todos vocês!

E, por fim, gritou:

– CORTEM-LHE A CABEÇA, PORRA!

Alice acordou assustada e suspirou aliviada ao ver que tudo não havia passado de um pesadelo e que havia chegado ao fim. Levantou-se, preparou uma xícara de café e, ao abrir o navegador da internet, deixou cair a xícara tamanha a surpresa quando viu que não havia sonhado.

O País das Maravilhas havia se tornado o País da Cloroquina e a piscina do Alvorada estava cheia de ratos.

Beto Volpe, 58, é ativista em direitos humanos e vive com HIV há 30 anos. Ocupou várias representações no movimento de luta contra a AIDS e é autor do livro ‘Morte e Vida Posithiva’.

 

Espalhe a notícia